Read O Primo Basílio Online

Authors: Eça de Queirós

O Primo Basílio (48 page)

Foi reler todas as cartas que ela lhe escrevera para o Alentejo, procurando descobrir nas palavras sintomas de frieza, a data da traição! Tinha-lhe ódio então, voltavam-lhe ao cérebro idéias homicidas - esganá-la, dar-lhe clorofórmio, fazer-lhe beber láudano! E depois imóvel, encostado à janela, ficava esquecido num cismar espesso, revendo o passado, o dia do seu casamento, certos passeios que dera com ela, palavras que ela dissera...

Às vezes pensava - seria a carta uma mistificação? Algum inimigo dele podia tê-la escrito, remetido para a França. Ou talvez Basílio tivesse outra Luísa em Lisboa, e por engano ao sobrescritar o envelope tivesse escrito o nome da prima; e a alegria momentânea que lhe davam aquelas fantasias fazia-lhe parecer a realidade mais cruel. Mas como fora? Como fora? Se pudesse saber a verdade! Tinha a certeza que sossegaria, então! Arrancaria decerto do seu peito aquele amor como um parasita imundo; apenas ela melhorasse, levá-la-ia a um convento, e ele iria morrer longe, na África, ou algures... Mas quem saberia?... JULIANA!

Era ela que sabia! Decerto! E todas as condescendências dela por Juliana, os móveis, o quarto, as roupas, compreendeu tudo! Era a pagar a cumplicidade! Era a sua confidente! Levava as cartas, sabia tudo. E estava na vala, morta, sem poder falar, a maldita!

Sebastião, como costumava, veio à noitinha. Não havia ainda luzes, e, apenas ele entrou, Jorge chamou-o ao escritório, calado, acendeu uma vela, tirou a carta da gaveta.

— Lê isto.

Sebastião ficara assombrado ao ver o rosto de Jorge. Olhava a carta fechada, e tremia. Apenas viu a assinatura, uma palidez de agonia cobriu-lhe o rosto. Parecia-lhe que o soalho tinha uma vibração onde ele se firmava mal. Mas dominou-se leu devagar, pousou a carta sobre a mesa, sem uma palavra.

Jorge disse então:

— Sebastião, isto pra mim é a morte. Sebastião, tu sabes alguma coisa. Tu vinhas aqui tu sabes. Dize-me a verdade!

Sebastião abriu devagar os braços e respondeu:

— Que te hei de eu dizer? Não sei nada!

Jorge agarrou-lhe as mãos, sacudiu-lhas, e procurando o seu olhar ansiosamente:

— Sebastião, pela nossa amizade, pela alma de tua mãe, por tantos anos que temos passado juntos, Sebastião, dize-me a verdade!...

— Não sei nada. Que hei de eu saber?

— Mentes!

Sebastião disse apenas:

— Podem-te ouvir, homem!

Houve um silêncio: Jorge apertava as fontes nas mãos, com passadas pelo escritório, que faziam vibrar o soalho; e de repente pondo-se diante de Sebastião quase suplicante:

— Mas dize-me ao menos o que fazia ela! Saía? Vinha aqui alguém?

Sebastião respondeu devagar, os olhos fixos na luz:

— Vinha o primo às vezes, ao princípio. Quando a D. Felicidade esteve doente, ela ia vê-la... O primo depois partiu... Não sei mais nada.

Jorge esteve um momento a olhar Sebastião, com uma fixidez abstrata.

— Mas que lhe fiz eu, Sebastião? Que lhe fiz eu? Adorava-a! Que lhe fiz eu para isto? Eu, que a adorava, àquela mulher!

Rompeu a chorar.

Sebastião ficara de pé junto à mesa, estúpido, aniquilado.

— Foi talvez uma brincadeira, apenas... - murmurou.

— E o que diz a carta? - gritou Jorge, voltando-se numa cólera, sacudindo o papel. - Este "Paraíso!", "As boas manhãs" lá passadas! E uma infame!...

— Está doente, Jorge - disse apenas Sebastião.

Jorge não respondeu. Passeou calado algum tempo. Sebastião, imóvel, fatigava a vista contra a chama da luz. Jorge então fechou a carta na gaveta, e tomando o castiçal com um tom de lassidão lúgubre e resignado:

— Queres vir tomar chá, Sebastião?

E não tornaram mais a falar na carta.

Nessa noite Jorge dormiu profundamente. Ao outro dia o seu rosto estava impassível, de uma serenidade lívida.

Foi daí por diante o enfermeiro de Luísa.

A doença, depois de uma marcha incerta durante três dias, definiu-se: eram crescimentos; enfraquecia muito, mas Julião estava tranqüilo.

Jorge passava os seus dias ao pé dela. D. Felicidade vinha ordinariamente pelas manhãs; sentava-se aos pês da cama, e ficava calada, com uma face envelhecida; aquela esperança na mulher de Tui tão subitamente destruída, abalara-a como um velho edifício a que se tira subitamente um pilar; ia-se tornando ruína; e só se animava quando o Conselheiro aparecia pelas três horas a saber da "nossa formosa enferma". Trazia sempre alguma palavra grave que dizia com um tom profundo, conservando o chapéu na mão, sem querer entrar alcova, por pudor:

— A saúde é um bem que só apreciamos quando nos foge!

Ou:

— A doença serve para aquilatarmos os amigos.

E terminava sempre:

— Meu Jorge, as rosas da saúde bem cedo reflorirão nas faces de sua virtuosa esposa!...

De noite Jorge dormia vestido, num enxergão sobre o chão; mas apenas cerrava os olhos uma ou duas horas. O resto da noite procurava ler: começava um romance mas nunca ia além das primeiras linhas; esquecia o livro, e com a cabeça entre as mãos punha-se a pensar: era sempre a mesma idéia - como tinha sido? Conseguira reconstituir aproximadamente, com lógica, certos fatos; via bem Basílio chegando, vindo visitá-la, desejando-a, mandando-lhe ramos, perseguindo-a indo-a ver aqui e além, escrevendo-lhe; mas depois? Viera já a compreender que o dinheiro era para Juliana. A criatura tivera alguma exigência: tinha-os surpreendido? Possuía cartas?... E encontrava, naquela reconstrução dolorosa, falhas, vazios, como buracos escuros, onde a sua alma se arremessava sofregamente. Então começava a recordar os últimos meses desde a sua volta do Alentejo, e como ela se mostrara amante, e que ardor punha nas suas carícias... Para que o enganara então?

Uma noite, com precauções de ladrão, rebuscou todas as gavetas dela, esquadrinhou os vestidos, até as dobras da roupa branca, as caixas de colares, de rendas; viu bem o cofre de sândalo; estava vazio, nem o pó de uma flor seca! Às vezes punha-se a fitar os móveis no quarto, na sala, a sondá-los como se quisesse descobrir neles os vestígios do adultério. Ter-se-iam sentado ali? Ele teria ajoelhado aos pés dela, acolá sobre o tapete? Sobretudo o divã tão largo, tão cômodo, desesperava-o; tomou-lhe ódio. Veio a detestar mesmo a casa, como se os tetos que os tinham coberto, os soalhos que os tinham sustentado tivessem uma cumplicidade consciente. Mas o que o torturava sobretudo eram aquelas palavras - o "Paraíso, as boas manhãs..."

Luísa então já dormia tranqüilamente. Ao fim de uma semana os crescimentos desapareceram. Mas estava muito fraca: no dia em que pela primeira vez se levantou, desmaiou duas vezes; era necessário vesti-la, trazê4a amparada para a chaise longue; e não dispensava Jorge, queria-o ali, ao pé, com exigências de criança! Parecia receber a vida dos seus olhos, a saúde do contato das suas mãos. Fazia-lhe ler o jornal pela manhã, e vir escrever para ao pé dela. Ele obedecia, e mesmo aquelas instâncias eram para a sua dor como carícias consoladoras. É porque o amava decerto!

Sentia então, maquinalmente, abertas de felicidade. Surpreendia-se dizer-lhe ternuras, a rir com ela, esquecido, como dantes! E, estendida na chaise longue, Luísa, contente, percorria antigos volumes da Ilustração Francesa, que lhe mandara O Conselheiro - "onde", segundo ele lhe dissera, podia, ao mesmo tempo que se divertia com os desenhos, adquirir noções úteis sobre importantes acontecimentos históricos; ou, com a cabeça reclinada, saboreava a felicidade de melhorar, de estar livre das tiranias da outra, das amarguras do passado.

Uma das suas alegrias era ver entrar a Mariana com o seu jantarzinho disposto num guardanapo sobre o tabuleiro; tinha apetite, saboreava muito o cálice de vinho do Porto, que Julião recomendara; quando Jorge não estava, fazia longas conversações com Mariana, palrando baixo, consolada, e lambendo colherinhas de gelatina.

Às vezes, calada, com os olhos no teto, fazia planos. Dizia-os depois a Jorge: iria estar duas semanas no campo, para ganhar forças; à volta começaria a bordar tiras de casimira para cobrir as cadeiras da sala; porque queria ocupar-se muito da casa, viver recolhida; ele não voltaria ao Alentejo, não sairia de Lisboa, não é verdade? E a sua vida seria dai por diante de uma doçura contínua e fácil.

Mas Luísa às vezes achava-se macambúzio. Que tinha? Ele explicava pela fadiga, pelas noites maldormidas... Se adoecesse, ao menos, dizia ela, que fosse quando ela estivesse forte para o tratar, para o velar!... Mas não adoeceria, não? E fazia-o sentar ao pé de si, passava-lhe a mão pelos cabelos, com o olhar quebrado, porque com as forças que renasciam vinham os impulsos do seu temperamento amoroso. Jorge sentia que a adorava, e era mais desgraçado!

Luísa, só consigo, tinha outras resoluções. Não tornaria a ver Leopoldina, e freqüentaria as igrejas. Saía da doença com uma vaga sentimentalidade devota. Durante a febre, em certos pesadelos de que lhe ficara uma indistinta idéia aterrada, vira-se às vezes num lugar pavoroso, onde corpos se erguiam, torcendo os braços, do meio de chamas escarlates; formas negras giravam com espetos em brasa, um rugido de agonia subia para a mudez do céu; e já lhe tocavam o peito línguas de fogueiras, quando alguma coisa de doce e de inefável de repente a refrescava; eram as asas de um anjo luminoso e sereno, que a tomava nos braços; e ela sentia-se elevar, apoiando a cabeça contra o seio divino, que a penetrava de uma felicidade sobrenatural; via as estrelas de perto, ouvia frêmitos de asas. Aquela sensação deixara-lhe como uma recordação saudosa do céu. E aspirava a ela, nas debilidades da convalescença, esperando ganhá-la pela pontualidade à missa, e pela repetição de coroas à Virgem.

Enfim uma manhã veio à sala, e abriu pela primeira vez o piano; Jorge, à janela, olhava para a rua - quando ela o chamou, e sorrindo:

— Estou a detestar, há tempos, aquele divã - disse. - Podia-se tirar, não te parece?

Jorge sentiu uma pancada no coração: não pôde responder logo; disse, enfim, com esforço:

— Sim, parece...

— Estou com vontade de o tirar - disse ela saindo da sala, arrastando tranqüilamente a longa cauda do seu roupão.

Jorge não pôde destacar os olhos do divã. Veio mesmo sentar-se nele; passava a mão sobre o estofo às listras; e sentia um prazer doloroso em verificar que fora ali.

Principiara a vir-lhe agora uma espécie de resignação sombria; quando a ouvia gozar tanto as melhoras, falar com felicidade de futuros tranqüilos, decidia-se a aniquilar a carta, esquecer tudo. Ela tinha-se arrependido decerto, amava-o: para que havia de criar a sangue-frio uma infelicidade perpétua? Mas quando a via com os seus movimentos lânguidos estender-se na chaise longue, ou ao despir-se mostrar a brancura do seu colo - e pensava que aqueles braços tinham enlaçado outro homem, aquela boca gemido de amor numa cama alheia - vinha-lhe uma onda de cólera bruta, precisava sair para a não esganar!

Para explicar os seus maus humores, os seus silêncios, começou a queixar-se, a dizer-se doente. E as solicitudes dela, então, as interrogações mudas do seu olhar inquieto faziam-no mais infeliz - por se sentir amado, agora que se sabia traído!

Um domingo enfim Julião deu licença a Luísa para se deitar mais tarde, e fazer à noite as honras da casa. Foi uma alegria para todos vê-la na sala, ainda um pouco pálida e fraca - mas, como disse o Conselheiro, restituída aos deveres domésticos e aos prazeres da sociedade!

Julião que veio às nove horas achou-a como nova. E abrindo os braços, no meio da sala:

— E que me dizem à novidade? - exclamou. - A peça do Ernesto teve um triunfo!...

Assim tinham lido nos jornais. O Diário de Notícias dizia mesmo que o "autor chamado ao proscênio, no meio do mais vivo entusiasmo, recebera uma formosa coroa de louros". Luísa declarou logo que queria ir ver!

— Mais tarde, D. Luísa, mais tarde - acudiu com prudência o Conselheiro. - Por ora é conveniente evitar toda a comoção forte. As lágrimas que não deixaria de derramar, conheço o seu bom coração, podiam produzir uma recaída. Não é verdade, amigo Julião?

— Decerto, Conselheiro, decerto. Eu também quero ir. Quero convencer-me por meus olhos...

Mas o ruído de uma carruagem, lançada a trote largo, que parou à porta, interrompeu-o. A campainha retiniu fortemente.

— Aposto que é o autor! - exclamou ele.

E quase imediatamente a figura radiante de Ernestinho, de casaca, precipitou-se na sala; ergueram-se com ruído, abraçaram-no: mil parabéns! Mil parabéns! E a voz do Conselheiro, dominando as outras:

— Bem-vindo o festejado autor! Bem-vindo!

Ernesto sufocava de júbilo. Tinha um sorriso imobilizado; as asas do nariz dilatavam-se-lhe, como para respirar os incensos; trazia o peito alto, enfunado de orgulho; e movia a cabeça, sem cessar, como num agradecimento instintivo a multidões aplaudidoras.

— Aqui estou! Aqui estou! - disse.

Sentou-se ofegante; e, com um modo amável de Deus, bom rapaz, declarou que os últimos ensaios de apuro não lhe tinham deixado um momento para vir ver a prima Luísa. Tinha tido naquela noite um instante de seu, mas devia voltar às dez horas para o teatro: até nem mandara a tipóia embora...

Contou então largamente o triunfo. Ao principio tivera "grandes cólicas". Todos as tinham, os mais acostumados, os mais ilustres! Mas apenas o Campos disse o monologo do primeiro ato - "e como o disse!" haviam de ver, uma coisa sublime - os aplausos romperam. Tinha agradado tudo. No fim era um barulho, gritos pelo autor, salvas de palmas... Ele viera ao palco, arrastado; não queria, mas obrigaram-no, a Jesuína por um lado, a Maria Adelaide por outro! Um delírio! O Saavedra do Século tinha-lhe dito: "o amigo é o nosso Shakespeare!" O Bastos da Verdade tinha afirmado: "és o nosso Scribe!" Houve uma ceia. E tinham-lhe dado uma coroa.

— E serve-lhe? - acudiu Julião.

— Perfeitamente; um bocadinho larga...

O Conselheiro disse com autoridade:

— Os grandes autores, o famigerado Tasso, o nosso Camões são sempre representados com as suas respectivas coroas.

— É o que eu lhe aconselho, Sr. Ledesma - acudiu Julião, erguendo-se e batendo-lhe no ombro -, é que se faça retratar de coroa!...

Riram.

E Ernestinho, um pouco despeitado, desdobrando o seu lenço perfumado:

— O Sr. Zuzarte não dispensa o seu epigramazinho...

— É a prova da glória, meu amigo. Nos triunfos dos generais vitoriosos, em Roma, havia um bobo no préstito!

Other books

The Fall of the Stone City by Kadare, Ismail
Judas by Frederick Ramsay
The Shore by Sara Taylor
Dogs of War by Frederick Forsyth
Tightly Wound by Mia Dymond
The Recycled Citizen by Charlotte MacLeod
LOCKED by DaSilva, Luis
The Finkler Question by Howard Jacobson
The Nine Giants by Edward Marston