O Primo Basílio (45 page)

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Authors: Eça de Queirós

Mas de repente o Conselheiro bateu na testa, arremessou-se sobre o chapéu, saiu impetuosamente. Olharam-se inquietos. D. Felicidade empalideceu; seria alguma dor? Santo Deus! Já murmurava baixo uma reza.

Mas viram-no entrar logo, e dizer com uma voz triunfante:

— De azul-escuro!

Abriram grandes olhos, sem compreender.

— Sua Majestade a rainha! Tinha prometido verificá-lo, cumpri-o!

E sentou-se com solenidade, dizendo a Luísa:

— Lamento que se esconda nesse recanto, D. Luísa! Na sua idade! Na flor dos anos! Quando tudo na vida é cor-de-rosa!

Ela sorriu. Estava agora muito sobressaltada. A cada momento olhava o relógio. Sentia-se doente; os pés arrefeciam-lhe, uma vaga febre fazia-lhe a cabeça pesada. O seu pensamento estava na casa, em Juliana, em Sebastião, cortado de palpites, de esperanças, de terrores... E via, sem compreender, a multidão de soldados vestidos de cores bipartidas, com armas obsoletas, que marchavam, paravam numa cadência afetada, erguendo uma poeira sutil no tablado malregado. Um coro vigoroso ressoava: era a marcha arrogante e festiva dos reires alemães celebrando a alegria das excursões vitoriosas pelos países do vinho, e a posse das bolsas mercenárias cheias de sonoros risdales! E os seus olhos seguiam um barbaças corpulento, que, por cima dos gorros quadrados dos besteiros, balançava monotonamente um largo quadrado de paninho - a bandeira do Santo Império, negra, vermelha e de ouro!

Mas então ergueu-se um rumor no fundo da platéia. Vozes duras altercavam. "Ordem! ordem!" dizia-se. Localistas na superior puseram-se rapidamente em bicos de pés na palhinha das cadeiras. Quatro policias e dois municipais apareceram à porta do fundo; e depois de uma troça, de risadas, foram levando um moço lívido, que cambaleava - e o lado esquerdo do seu jaquetão de pelúcia estava todo vomitado!

Mas fez-se logo silêncio: o pano de fundo oscilava um pouco acotovelado pela saída festiva dos reitres e dos populares; e no palco deserto, tendo à direita um pórtico oscilante de catedral e à esquerda a portinha triste de uma casa burguesa, Valentim, com uma longa pêra, à beira da rampa, beijava sofregamente uma medalha; mas Luísa não o escutava. Pensava com o coração confrangido: que fará a esta hora Sebastião?

Sebastião, às nove horas, por um nordeste agudo que torcia as luzes do gás dentro dos candeeiros, dirigia-se devagar à casa de um comissário de policia, seu primo afastado, o Vicente Azurara. Uma velha servente, engelhada como uma maçã raineta, levou-o ao quarto escolástico, onde o senhor comissário estava a cozer uma grande constipação; encontrou-o com um gabão pelos ombros, os pés embrulhados num cobertor, tomando grogues quentes, e lendo o Homem dos três calções. Apenas Sebastião entrou, tirou do nariz adunco as grandes lunetas, e erguendo para ele os olhos pequeninos, chorosos de defluxo, exclamou:

— Estou com um diabo de uma constipação há três dias, que me não quer largar... - E rosnou algumas pragas, passando a mão magra e nodosa sobre uma face trigueira, de linhas duras, a que um espesso bigode grisalho dava ferocidade.

Sebastião lamentou-o muito; não admirava, com a estação que ia!... Aconselhou-lhe água sulfúrica com leite fervido.

— Eu, se isto não despega - disse o comissário rancorosamente -, atiro-lhe amanhã para dentro com meia garrafa de genebra; e se não for por bem, há de ir à força... E que há de novo?

Sebastião tossiu, queixou-se de andar também adoentado, e chegando a cadeira para ao pé do primo Vicente, pondo-lhe a mão sobre o joelho:

— Ó Vicente, tu, se eu te pedisse um polícia pra me acompanhar cá para uma coisa, só para meter medo, só para fazer que uma pessoa restitua o que tirou, tu davas ordem, bem?

— Ordem para quê? - perguntou lentamente o Vicente, com a cabeça baixa, os olhinhos avermelhados em Sebastião.

— Ordem para me acompanhar, para se mostrar. É só para se mostrar. É um caso esquisito... Para meter medo... Tu sabes que eu não sou capaz... E para que uma pessoa restitua o que tirou. Sem fazer escândalo...

— Roupas? Dinheiro?

E o comissário cofiava refletidamente o bigode com os seus longos dedos magros, muito queimados de cigarro.

Sebastião hesitou:

— Sim. Roupas, coisas... E para não haver escândalo... Tu percebes...

O Vicente murmurou com um ar profundo, fixando-o:

— Um policia para se mostrar...

Escarrou ruidosamente. E franzindo a testa:

— Não é coisa de política?

— Não! - fez Sebastião.

O comissário embrulhou mais os pés no cobertor, rolou em redor os olhos, ferozmente:

— Nem toca com gente graúda?

— Qual!

— Um policia para se mostrar... - ruminava o Vicente. - Tu és um homem de bem... Dá cá aquela pasta de cima da cômoda.

Tirou um papel pautado, examinou, acavalando a luneta no nariz, meditou com a mão em garra sobre a testa:

— O Mendes... Serve-te o Mendes?

Sebastião, que não conhecia o Mendes, acudiu logo:

— Sim, quem quiseres. É só para se mostrar...

— O Mendes. E um homenzarrão. É sério, foi da Guarda.

Fez-lhe aproximar o tinteiro; escreveu devagar a ordem; releu-a duas vezes; cortou os tt, secou-a à chaminé do candeeiro; e dobrando-a com solenidade:

— À segunda divisão!

— Obrigado, Vicente. É um grande favor... Obrigado. E agasalha-te, homem. E não te esqueças: água sulfúrica da Farmácia Azevedo na Rua de São Roque; meia chávena de leite fervido... E obrigado. Não queres nada, hem? ar

— Não. Dá uma placa ao Mendes. É sério, foi da Guarda!

— E acavalando as lunetas retomou o Homem dos três calções.

Sebastião daí a meia hora, seguido do robusto Mendes, que marchava militarmente, com os braços um pouco arqueados, encaminhava-se para casa de Jorge. Não tinha ainda um plano definido. Calculava naturalmente que Juliana vendo àquela hora da noite, o polícia com o seu terçado, se aterraria, imaginaria Boa Hora, o Limoeiro, a costa da África, entregaria as cartas, pediria misericórdia! E depois? Pensava vagamente em lhe pagar a passagem para o Brasil, ou dar-lhe quinhentos mil réis para ela se estabelecer longe, na província... O essencial era aterrá-la!

Juliana com efeito, depois de abrir a porta, apenas viu subir, atrás de Sebastião o policia, fez-se muito amarela, exclamou:

— Credo! Que temos nós?

Estava embrulhada num xale preto, e o candeeiro de petróleo, que ela erguia, prolongava na parede a sombra disforme da cuia.

— Ó Sra. Juliana, faça o favor de acender luz na sala - disse Sebastião tranqüilamente.

Ela fixava no polícia um olhar faiscante e inquieto.

— Ó senhor, que aconteceu? Credo! Os senhores não estão em casa. Eu se soubesse nem tinha aberto... Há alguma novidade? Olha o propósito!

— Não é nada... - disse Sebastião, abrindo a porta da sala. - Tudo em paz.

... Ele mesmo acendeu com um fósforo uma vela na serpentina - que fez sair vagamente da sombra os dourados dos caixilhos das gravuras, a pálida face do retrato da mãe de Jorge, um reflexo de espelho.

— Ó Sr. Mendes, sente-se, sente-se!

O Mendes colocou-se à beira da cadeira com a mão na cinta, o terçado entre os joelhos, muito soturno.

— Esta é que é a pessoa - disse Sebastião indicando Juliana, que ficara à porta da sala atônita.

A mulher recuou, lívida:

— Ó senhor Sebastião, que brincadeira é esta?

— Não é nada, não é nada...

Tomou-lhe o candeeiro da mão, e tocando-lhe no braço:

— Vamos lá dentro à sala de jantar.

— Mas que é? É alguma coisa comigo? Credo! E esta! Olha que desconchavo!

Sebastião fechou a porta da sala de jantar, pousou o candeeiro sobre a mesa, onde havia ainda um prato com côdeas de queijo e um fundo de vinho num copo, deu alguns passos fazendo estalar nervosamente os dedos, e parando bruscamente diante de Juliana:

— Dê cá umas cartas que roubou à senhora...

Juliana teve um movimento para correr à janela, gritar.

Sebastião agarrou-lhe o braço, e fazendo-a sentar com força sobre a cadeira:

— Escusa de ir à janela gritar, a policia já está dentro de casa. Dê cá as cartas, ou para a enxovia!

Juliana entreviu num relance um quarto tenebroso no Limoeiro, o caldo do rancho, a enxerga nas lajes frias...

— Mas que fiz eu? - balbuciava. - Que fiz eu?

— Roubou as cartas. Dê-as para cá, avie-se.

Juliana, sentada à beira da cadeira, apertando desesperadamente as mãos, rosnava por entre os dentes cerrados:

— A bêbeda! A bêbeda!

Sebastião, impaciente, pôs a mão no fecho da porta.

— Espere, seu diabo! - gritou ela erguendo-se com um salto. Fixou-o rancorosamente, desabotoou o corpete, enterrou a mão no peito, tirou uma carteirinha. Mas de repente batendo com o pé, num frenesi:

— Não! Não! Não!

— Diabos me levem se você não for dormir à enxovia! - Entreabriu a porta. - Ó Sr. Mendes!

— Aí tem! - gritou ela atirando-lhe a carteira. E brandindo para ele os punhos: - Raios te partam, malvado!

Sebastião apanhou a carteira. Havia três cartas: uma muito dobrada era de Luísa; leu a primeira linha: "Meu adorado Basílio"; e muito pálido guardou logo tudo na algibeira interior do casaco. Abriu então a porta: a possante figura do Mendes estava na sombra.

— Está tudo arranjado, Sr. Mendes - a voz tremia-lhe um pouco -, não lhe quero tomar mais tempo.

O homem fez uma continência, calado; quando Sebastião, no patamar, lhe resvalou na mão uma libra, o Mendes curvou-se respeitosamente e disse, com uma voz pegajosa:

— E para o que quiser, o sessenta e quatro, o Mendes, que foi da Guarda. Não se incomode Vossa Senhoria. Às ordens de Vossa Senhoria minha mulher e filhos agradecem. Não se incomode Vossa Senhoria. O sessenta e quatro, O Mendes, que foi da Guarda!

Sebastião fechou a cancela, voltou à sala de jantar. Juliana ficara numa cadeira, aniquilada; mas apenas o viu, erguendo-se furiosamente:

— A bêbeda foi-lhe contar tudo! Foi você que arranjou a armadilha! Também você dormiu com ela!...

Sebastião, muito branco, dominava-se.

— Vá pôr o chapéu, mulher. O Sr. Jorge despediu-a. Amanhã mandará buscar os baús...

— Mas o homem há de saber tudo! - berrou ela. - Este teto me rache se eu não lhe disser tudo tintim por tintim. Tudo! As cartas que recebia, onde ia ver o homem. Deitava-se com ela na sala, até os pentes lhe caíam na balbúrdia. Até a cozinheira lhes sentia o alarido!

— Cale-se! - bradou Sebastião com uma punhada na mesa, que fez tremer toda a louça do aparador e esvoaçar os canários. E com a voz toda trêmula, os beiços brancos: - A polícia tem o seu nome, sua ladra! A menor palavra que você diga vai para o Limoeiro, e pela barra fora. Você não roubou só as cartas; roubou roupas, camisas, lençóis, vestidos... - Juliana ia falar, gritar. - Bem sei

— continuou ele violentamente -, - deu-lhos ela, mas à força, porque você a ameaçava. Você arrancou-lhe tudo. É roubo. É de África! - É o que é dizer ao Jorge, pode ir dizer. Vá. Veja se ele a acredita. Diga! São algumas bengaladas que leva por esses ombros, sua ladra!

Ela rangia os dentes; Estava apanhada! Eles tinham tudo por si, a polícia, a Boa Hora, a cadeia, a África!... E ela - nada!

Todo o seu ódio contra a Piorrinha fez explosão. Chamou-lhe os nomes mais obscenos. Inventou infâmias.

— É que nem as do Bairro Alto! E eu - gritava - sou uma mulher de bem, nunca um homem se pode gabar de tocar neste corpo. Nunca houve raio nenhum que me visse a cor da pele. E a bêbeda!... - Tinha arremessado o xale, alargou ansiosamente o colar do vestido. - Era um desaforo por essa casa! E o que eu passei com a bruxa da tia! É o pago que me dão! Os diabos me levem se eu não for para os jornais. Vi-a eu abraçada ao janota, como uma cabra!

Sebastião a seu pesar escutava-a, com uma curiosidade dolorosa por aqueles pormenores; sentia desejos agudos de a esganar, e os seus olhos devoravam-lhe as palavras. Quando ela se calou arquejante:

— Vá, ponha o chapéu, e para a rua!

Juliana então alucinada de raiva, com os olhos saídos das órbitas, veio para ele e cuspiu lhe na cara!

Mas de repente a boca abriu-se-lhe desmedidamente, arqueou-se para trás, levou com ânsia as mãos ambas ao coração, e caiu para o lado, com um som mole, como um fardo de roupa.

Sebastião abaixou-se, sacudiu-a; estava hirta, uma escuma roxa aparecia-lhe aos cantos da boca.

Agarrou no chapéu, desceu as escadas, correu até a Patriarcal. Um cupê passava; atirou-se para dentro, mandou a "todo o que der", para a casa de Julião; e obrigou-o a vir imediatamente, mesmo em chinelas, sem colarinho.

— É caso de morte, é a Juliana - balbuciava muito pálido.

E pelo caminho, entre o ruído das rodas e o tilintar dos caixilhos, contava ente que entrara em casa de Luísa, que achara Juliana muito despeitada por ter sido despedida, e que a falar, a esbracejar, de repente, tombara para o lado!

— Foi o coração. Estava para dias - disse Julião, chupando a ponta do cigarro.

Pararam. Mas Sebastião desorientado, ao sair, fechara a porta! E dentro só a morta! O cocheiro ofereceu a sua gazua, que serviu.

— Então nem se vai a uma passeatinha ao Dafundo, meus fidalgos? - disse o homem, metendo a gorjeta na algibeira.

Mas vendo-os atirar com a porta:

— Também não é gente disso - rosnou com desprezo, batendo a parelha.

Entraram.

No pequeno pátio o silêncio da casa pareceu a Sebastião pavoroso. Subia, aterrado, os degraus, que se lhe afiguravam infindáveis; e, com fortes pancadas do coração, esperava ainda que ela estivesse apenas adormecida num desmaio simples, ou já de pé, pálida e respirando!

Não. Lã estava como a deixara, estendida na esteira, com os braços abertos, os dedos retorcidos como garras. A convulsão das pernas arregaçara-lhe as saias, viam-se as suas canelas magras com meias de riscadinho cor-de-rosa e as chinelas de tapete; o candeeiro de petróleo, que Sebastião esquecera ao pé sobre uma cadeira, punha tons lívidos na testa, nas faces rígidas; a boca torcida fazia uma sombra; e os olhos medonhamente abertos, imobilizados na agonia repentina, tinham uma vaga névoa, como cobertos de uma teia de aranha diáfana. Em redor tudo parecia mais imóvel, de um hirto morto. Vagos reflexos de prata reluziam no aparador; e o tique-taque do cuco palpitava sem descontinuar.

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