O Primo Basílio (41 page)

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Authors: Eça de Queirós

— É como quem toma óleo de rícino! - disse a outra com um gesto cínico. E acrescentou, vendo o horror de Luísa: - Que diabo! Onde é que está a desonra, em pedir dinheiro emprestado? Todo o mundo pede...

Naquele momento outra carruagem, a largo trote, parou.

— Entra tu primeiro! Fala-lhe tu primeiro! - suplicou Luísa, erguendo as mãos para ela.

A campainha retiniu. Luísa, muito trêmula, muito branca, olhava para todos os lados com um olhar muito aberto, de susto, de ânsia, como procurando uma idéia, uma resolução ou um recanto para se esconder. Botas de homem rangeram na esteira da sala ao lado. Leopoldina então disse-lhe baixo, devagar, como para lhe cravar as palavras na alma, uma a uma.

— Lembra-te que daqui a uma hora podes estar salva, com as tuas cartas na algibeira, feliz, livre!

Luísa pôs-se de pé com uma decisão brusca. Foi pôr pó-de-arroz, alisou o cabelo - e entraram na sala.

Ao ver Luísa, o Castro teve um movimento surpreendido. Curvou-se, com os pés pequeninos muito juntos, inclinando a cabeça grossa, onde os cabelos muito finos alourados já rareavam.

Sobre o seu ventrezinho redondo, que a perna curta fazia parecer quase pançudo, o medalhão do relógio pousava com opulência. Trazia na mão um chicote, cujo cabo de prata representava uma Vênus retorcendo os braços. A pele tinha um rubor próspero; o bigode farto terminava em pontas agudas, empastadas em cera mostacha, de um aspecto napoleônico. E os seus óculos de ouro tinham um ar autoritário, bancário, amigo da Ordem. Parecia contente da vida como um pardal muito farto.

Com quê! Era necessário mandá-lo chamar para que se pusesse a vista em cima - começou logo Leopoldina. E depois de o apresentar a Luísa, "sua intima, sua amiga de colégio":

— Que tem feito, por que não tem aparecido?

O Castro repoltreou-se numa cadeira de braços, e batendo com o chicote nas botas, desculpou-se com os preparativos da partida...

— Sempre é verdade? Deixa-nos?

O Castro curvou-se:

— Além de amanhã. No Orenoque.

— Então desta vez os jornais não mentiram. E com demora?

— Per omnia saecula saeculorum.

Leopoldina pasmava. Deixar Lisboa! Um homem tão estimado, que se podia divertir tanto! - Pois não é verdade? - disse voltando-se para Luísa, para a tirar do seu silêncio embaraçado.

— Com certeza - murmurou ela.

Estava sentada à beira da cadeira, como assustada, pronta a fugir. E os olhares do Castro, insistentes por trás do reflexo dos óculos, incomodavam-na.

Leopoldina reclinara-se no sofá, e ameaçando-o com o dedo erguido:

— Ah! Aí nessa ida para França anda história de saias!

Ele negou frouxamente, com um sorriso fátuo.

Mas Leopoldina não achava as francesas bonitas - o que era é que tinham muito chique, muita animação...

O Castro declarou-as adoráveis. Sobretudo para a estroinice! Ah! Conhecia-as bem! Enfim, lá como mães de família não dizia. Mas para uma ceia, para um bocado de cancã não havia outras... - Afirmava-o com convicção, pois, como os burgueses "da sua roda", avaliava doze milhões de francesas por seis prostitutas do café-concerto - que tinha pago caro e enfastiado imenso!

Leopoldina, para o lisonjear, chamou-lhe estróina!

Ele sorria, deliciando-se, afiando as pontas do bigode:

— Calúnias, calúnias... - murmurava.

E Leopoldina voltando-se para Luísa:

— Comprou uma quinta magnífica em Bordéus, um palácio!...

— Uma choupana, uma choupana...

— E naturalmente vai dar festas magníficas!...

— Modestos chás, modestos chás... - dizia, repoltreando-se.

E riam ambos de um modo muito afetado.

O Castro curvou-se então para Luísa:

— Tive o gosto de ver Vossa Excelência há tempos, na Rua do Ouro...

— Creio que também me lembro... - respondeu ela.

E ficaram calados. Leopoldina tossiu, sentou-se mais à beira do sofá e depois de sorrir:

— Pois eu mandei-o chamar porque temos uma coisa a dizer-lhe.

— Castro inclinou-se. O seu olhar não deixava Luísa, percorria-a com atrevimento, palpava-a.

— Aqui está o que é. Eu vou direita às coisas, sem preâmbulos. - E teve outro risinho. - Aqui a minha amiga está num grande apuro, e precisa um conto de réis.

Luísa acudiu, com a voz quase sumida:

— Seiscentos mil réis...

— Isso não importa - disse Leopoldina com uma indiferença opulenta estamos a falar com um milionário! A questão é esta: quer o meu amigo fazer o favor?

O Castro endireitou-se na cadeira, devagar, e com uma voz arrastada, ambígua:

— Certamente, certamente...

Leopoldina ergueu-se logo:

— Bem. Eu tenho ali no quarto a costureira à espera. Deixo-os falar do negócio.

E à porta do quarto, voltando-se para o Castro, ameaçando-o com o dedo, a voz muito alegre:

— Que o juro seja pequeno, hem?

E saiu, rindo.

O Castro disse logo a Luísa, curvando-se:

— Pois minha senhora, eu...

— A Leopoldina contou-lhe a verdade, estou numa grande aflição de dinheiro. E dirijo-me a si... São seiscentos mil réis... Procurarei pagar, o mais depressa...

— Oh, minha senhora! - fez o Castro com um gesto generoso. Começou então a dizer que compreendia perfeitamente, todo o mundo tinha os seus embaraços... Lamentava que a não tivesse conhecido há mais tempo... Sempre tivera uma grande simpatia por ela... Uma grande simpatia!...

Luísa calava-se, com os olhos baixos. Ele foi pousar o chicote na jardineira, veio sentar-se no sofá junto dela. Vendo o seu ar embaraçado, pediu-lhe que não se afligisse. Valia lá a pena por questões de dinheiro! Tinha o maior prazer em servir uma senhora nova, tão interessante... Fizera perfeitamente em se dirigir a ele. Conhecia casos em que senhoras se dirigiam a agiotas que as exploravam, eram indiscretos... - E falando tinha-lhe tomado a mão; o contato daquela pele apetecida, exaltando-lhe o desejo brutalmente, fazia-o respirar alto. Luísa, toda constrangida, nem retirara a mão; e Castro abrasado - como uma verbosidade um pouco rouca prometia tudo, tudo o que ela quisesse!... Os seus olhinhos arregalados devoravam-lhe o pescoço muito branco.

— Seiscentos mil réis..., o que quiser!...

— E quando? - disse Luísa muito perturbada.

Ele via-lhe o seio arfar - e sob a irrupção de um desejo brutal:

— Já!

Agarrou-a pela cinta, atirou-lhe um beijo voraz, quase lhe mordeu a face.

Luísa ergueu-se com o salto de uma mola de aço.

Mas o Castro escorregara sobre o tapete, de joelhos; e, prendendo-lhe sofregamente os vestidos:

— Dou-lhe o que quiser, mas sente-se! Há anos que tenho uma paixão por si. Escute! - Os seus braços trêmulos subiam; envolviam-na, e o que sentia das formas inflamava-o.

Luísa, sem ruído, repelia-lhe as mãos, recusava-se.

— O que quiser! Mas ouça! - balbuciava ele puxando-a violentamente para si. A concupiscência brutal dava-lhe uma respiração de touro.

Então, com um puxão desesperado às saias, ela soltou-se, recuando aflita:

— Deixe-me! Deixe-me!

O Castro ergueu-se, a bufar, e com os dentes cerrados, os braços abertos, rompeu para ela.

Diante daquela luxúria bestial, Luísa, indignada, agarrou instintivamente de

sobre a jardineira o chicote e deu-lhe uma forte chicotada na mão.

A dor, a raiva, o desejo enfureceram-no.

— Seu diabo! - rosnou, rangendo os dentes.

Ia-se arremessar. Mas Luísa então, erguendo o braço, revolvida por uma cólera frenética, atirou-lhe chicotadas rapidamente pelos braços, pelos ombros - muito pálida, muito séria, com uma crueldade a reluzir-lhe nos olhos, gozando uma alegria de desforra em fustigar aquela carne gorda.

O Castro, assombrado, defendia-se vagamente, com os braços diante da cara, recuando; de repente, topou contra a jardineira; o candeeiro de porcelana oscilou, desequilibrou-se, rolou no chão com estilhaços de louça, e uma nódoa escura de azeite alastrou-se na esteira.

— Ai está! Vê? - disse Luísa toda a tremer, apertando ainda convulsivamente o chicote.

Leopoldina ao barulho correu, do quarto.

— Que foi? Que foi?

— Nada, estávamos a brincar - disse Luísa.

Atirou o chicote para o chão, saiu da sala.

O Castro, lívido de raiva, tinha agarrado o chapéu; e fixando terrivelmente Leopoldina:

— Agradecido! Conte comigo quando quiser!

— Mas que foi? Que foi?

— Até à vista! - rugiu o Castro. - E indo apanhar o chicote, sacudindo-o ameaçadoramente para o quarto, onde Luísa entrara:

— Grande bêbeda! - murmurou com rancor. E saiu, atirando com as portas.

Leopoldina, atônita, veio encontrar Luísa no quarto a pôr o chapéu, com as ainda trêmulas, os olhos muito brilhantes, satisfeita.

— Chegou-me cá uma coisa, e enchi-lhe a cara de chicotadas - disse ela.

Leopoldina esteve um momento a olhá-la petrificada.

— Bateste-lhe?... - E de repente dasatou a rir, convulsivamente. - O Castro de óculos, o Castro coberto de chicotadas! O Castro a levar uma coça! - Atirou-se para cima da chaise longue, rolou-se; sufocava. - Até já tinha uma pontada, Jesus! O Castro!... Vir a uma casa amiga, levar o tiro de seiscentos mil réis e ser corrido a chicote!... Com o seu próprio chicote!... Oh! Era para estourar!...

— O pior foi o candeeiro - disse Luísa.

Leopoldina ergueu-se, de salto.

E o azeite! Ai que agouro! - Correu à sala. Luísa veio encontrá-la diante da nódoa escura, com os braços cruzados, como se visse, toda pálida, catástrofes avizinharem-se. - Que agouro, Santo Deus!

— Deita-lhe sal depressa.

— Faz bem?

— Quebra o agouro.

Leopoldina correu a buscar sal; e de joelhos, salgando a nódoa;

— Ai! Nossa Senhora permita que não haja nada mau! Mas que caso este, que caso este! E agora, filha?

Luísa encolheu os ombros.

— Eu sei cá! Sofrer!...

Capítulo doze

 

Nessa semana, uma manhã, Jorge, que se não recordava que era dia de gala, encontrou a secretaria fechada e voltou para casa ao meio-dia. Joana à porta conversava com a velha que comprava os ossos; a cancela em cima estava aberta; e Jorge, chegando despercebido ao quarto, surpreendeu Juliana comodamente deitada na chaise longue, lendo tranqüilamente o jornal.

Ergueu-se, muito vermelha, mal o viu, balbuciou:

— Peço desculpa, tinha-me dado uma palpitação tão forte...

— Que se pôs a ler o jornal, hem?... - disse Jorge, apertando instintivamente o castão da bengala. - Onde está a senhora?

— Deve estar para a sala de jantar - disse Juliana, que se pôs logo a varrer, muito apressada.

Jorge não encontrou Luísa na sala de jantar; foi dar com ela no quarto dos engomados, despenteada, em roupão de manhã, passando roupa, muito aplicada e muito desconsolada.

— Tu estás a engomar? - exclamou.

Luísa corou um pouco, pousou o ferro. - A Juliana estava adoentada, juntara-se uma carga de roupa...

— Dize-me cá, quem é aqui a criada e quem é aqui a senhora?

A sua voz era tão áspera, que Luísa fez-se pálida, murmurou:

— Que queres tu dizer?

— Quero dizer que te venho encontrar a ti a engomar, e que a encontrei a ela lá embaixo muito repimpada na tua cadeira, a ler o jornal!

Luísa, atarantada, abaixou-se sobre o cesto da roupa lavada, começou a remexer, a desdobrar, a sacudir com a mão trêmula...

— Tu não podes fazer idéia do que aqui vai por fazer - ia dizendo. - É a limpeza, são os engomados, é um servição. A pobre de Cristo tem estado doente...

— Pois se está doente que vá para o hospital!

— Não, também não tens razão!

Aquela insistência em defender a outra, que se repoltreava embaixo na sua chaise longue, exasperou-o:

— Dize cá, tu dependes dela? Havia de dizer que tens medo dela!

— Ah! Se estás com esse gênio! - fez Luísa com os beiços trêmulos, uma lágrima já nas pálpebras.

Mas Jorge continuava muito zangado:

— Não, essas condescendências hão de acabar por uma vez! Ver aquele estafermo, com os pés para a cova, a prosperar em minha casa, a deitar-se nas minhas cadeiras, a passear, e tu a defendê-la, a fazer-lhe o serviço, ah! Não! É necessário acabar com isso. Sempre desculpas! Sempre desculpas! Se não pode que arreie. Que vá para o hospital, que vá para o inferno.

Luísa lavada em lágrimas assoava-se, soluçando.

— Bem! Agora choras. Que tens tu? Por que choras? Ela não respondia, num grande pranto.

— Por que choras, filha? - perguntou ele com uma impaciência comovida, chegando-se a ela.

— Para que me falas tu assim? - dizia, toda soluçante, limpando os olhos. Sabes que estou doente, nervosa, e tens mau gênio para mim! O que me sabes dizer são coisas desagradáveis.

— Coisas desagradáveis! Minha filha, eu disse-te lá nada desagradável! - E abraçou-a, ternamente.

Mas ela desprendeu-se, e com a voz cortada de soluços:

— Então é algum crime estar a engomar? Porque trabalho, porque trato das minhas coisas, zangas-te? Querias que eu fosse uma desarranjada? A mulher tem estado doente! Enquanto se não arranja outra é necessário fazer as coisas... Mas tu falas, falas! Para me afligir!...

— Estás a dizer tolices, filha. Não estás em ti. Eu o que não quero é que te canses!

— Para que dizes então que tenho medo dela? - E as lágrimas recomeçavam. - Medo de quê? Por que hei de eu ter medo dela? Que despropósito!

— Pois bem, não digo. Não se fala mais na criatura. Mas não chores... Vá, acabou-se - Beijou-a. E tomando-a pela cinta, levando-a docemente: - Vá, o ferro agora. Vem! Que criança que tu és!

Por bondade, por consideração com os nervos de Luísa, Jorge durante alguns dias não falou na criatura. Mas pensava nela; e aquele estafermo, com os pés para a cova, em sua casa, exasperava-o. Depois as madracices que lhe percebera, os confortos do quarto que vira na noite em que ela desmaiara, aquela bondade ridícula de Luísa!... Achava aquilo estranho, irritante!... Como estava fora de casa todo o dia, e diante dele Juliana só tinha sorrisos para Luísa, muitas atitudes de afeto, imaginava que ela se soubera insinuar e, pelas pequenas intimidades de ama a criada, se tomara necessária e estimada. Isso aumentava a sua antipatia. E não a disfarçava.

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