O Primo Basílio (19 page)

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Authors: Eça de Queirós

Viera o assado. Leopoldina já ia tendo uma cor quente nas faces. Pediu a Juliana que lhe fosse buscar o leque; - e recostada, abanando-se, declarou que se sentia como um príncipe. E ia bebericando golinhos de vinho. Que boa idéia, jantarem juntas!...

Apenas Juliana dispôs os pratos de fruta, Luísa disse-lhe logo que chamaria para o café, que podia ir. Foi ela mesmo fechar a porta da sala, correr o reposteiro de cretone:

— Estamos à vontade, agora! Faço-me velha só de olhar para esta criatura! Estou morta por a ver pelas costas!

— Mas por que a não pões na rua?

Jorge que não queria, senão...

Leopoldina protestou. Boa! Os maridos não deviam ter vontade!... Era o que faltava!...

— E o teu, então? - disse Luísa, rindo.

— Obrigada! - exclamou Leopoldina. - Um homem que faz quarto à parte!...

De resto detestava os homens que se ocupam de criadas, de róis, de azeites e vinagres...

— Que lá o meu cavalheiro até pesa a carne! - Sorriu, com ódio. - Também é o que vale, senão!... Eu só de ir à cozinha me dão enjôos...

Quis deitar vinho, mas a garrafa estava vazia.

Luísa acudiu:

— Queres, tu champanhe? - Tinha-o muito bom, que o mandava a Jorge um proprietário de minas.

Foi ela mesmo buscar a garrafa, desembrulhou-a do seu papel azul; - e com risinhos, sustos, fizeram estalar a rolha. A espuma encantou-as; olhavam os copos, caladas, com um bem-estar feliz. Leopoldina gabou-se de saber abrir muito bem o champanhe; falava vagamente de ceias passadas...

— Em terça-feira gorda, há dois anos!...

E toda recostada na cadeira, com um sorriso cálido, as asas do nariz dilatadas, a pupila úmida, olhava com sensualidade os globulozinhos vivos que subiam, sem cessar, no copo esguio.

— Se fosse rica, bebia sempre champanhe - disse.

Luísa não, ambicionava um cupê; e queria viajar, ir a Paris, a Sevilha, a Roma... Mas os desejos de Leopoldina eram mais vastos: invejava uma larga vida, com carruagens, camarotes de assinatura, uma casa em Sintra, ceias, bailes, toaletes, jogo... Porque gostava do monte. - dizia - fazia-lhe bater o coração.

E estava convencida que havia de adorar a roleta.

— Ah! - exclamou. - Os homens são bem mais felizes que nós! Eu nasci para homem! O que eu faria!

Levantou-se, foi-se deixar cair muito languidamente na voltaire, ao pé da janela. A tarde descia serenamente; por trás das casas, para lá dos terrenos vagos, nuvens arredondavam-se, amareladas, orladas de cores sangüíneas ou de tons alaranjados.

E voltando-lhe a mesma idéia de ação, de independência:

— Um homem pode fazer tudo! Nada lhe fica mal! Pode viajar, correr aventuras... Sabes tu, fumava agora um cigarrito...

O pior é que Juliana podia sentir o cheiro. E parecia tão mal!...

— É um convento, isto! - murmurou Leopoldina. - Não tens má prisão, minha filha!

Luísa não respondeu; tinha encostado a cabeça à mão: e com o olhar vago, como continuando alguma idéia.

— São tolices, no fim, andar, viajar! A única coisa neste mundo é a gente estar na sua casa, com o seu homem, um filho ou dois...

Leopoldina deu um salto na voltaire. Filhos! Credo, que nem falasse em semelhante coisa! Todos os dias dava graças a Deus em os não ter!

— Que horror! - exclamou com convicção. - O incômodo todo o tempo que se está!... As despesas! Os trabalhos, as doenças! Deus me livre! É uma prisão! E depois quando crescem, dão fé de tudo, palram, vão dizer... Uma mulher com filhos está inútil para tudo, está atada de pés e mãos! Não há prazer na vida. E estar ali a aturá-los... Credo! Eu? Que Deus não me castigue, mas se tivesse essa desgraça parece-me que ia ter com a velha da Travessa da Palha!

— Que velha? - perguntou Luísa.

Leopoldina explicou. Luísa achava uma infâmia. A outra encolheu os ombros, acrescentou:

— E depois, minha rica, é que uma mulher estraga-se; não há beleza de corpo que resista. Perde-se o melhor. Quando se é como a tua amiga, a D. Felicidade, enfim!... Mas quando se é direitinha e arranjadinha!... Nada, minha rica! Embaraços não faltam!

Por baixo, na rua, o realejo do bairro, no seu giro da tarde, veio tocar o final da Traviata; ia escurecendo; já as verduras dos quintais tinham uma igual cor parda; e as casas para além esbatiam-se na sombra.

A Traviata lembrou a Luísa a Dama das camélias; falaram do romance; recordaram episódios...

— Que paixão que eu tive por Armando em rapariga! - disse Leopoldina.

— E eu foi por D'Artagnan - exclamou ingenuamente Luísa.

Riram muito.

— Começamos cedo - observou Leopoldina. - Dá-me uma gotinha mais.

Bebeu, pousou o cálice - e encolhendo os ombros:

— Oh! Começamos cedo? Começam todas! Aos treze anos já a gente vai na sua quarta paixão. Todas são mulheres, todas sentem o mesmo! - E batendo o compasso com o pé, cantou, no tom do fado:

— O amor é uma doença
Que costuma andar no ar;
Só d'ir à janela às vezes
S'apanha a febre d'amar!

— Estou hoje com uma telha! - E espreguiçando-se muito languidamente: - No fim de contas é o que há de melhor neste mundo; o resto é uma sensaboria! Não é verdade? Dize, tu! Não é verdade?

Luísa murmurou:

— Se é! - E acrescentou logo: - Creio eu!

Leopoldina ergueu-se, e escarnecendo-a:

— Crê ela! Pobre inocentinha! Vejam o anjinho!

Foi-se encostar à janela; ficou a olhar pelos vidros o descer do crepúsculo; de repente pôs-se a dizer devagar:

— Realmente vale bem a pena estar uma pobre de Cristo a privar-se, a passar uma vida de coruja, a mortificar-se, para vir um dia uma febre, um ar, uma soalheira e boas noites, vai-se para o alto de São João! Tó rola!

A sala agora estava um pouco escura.

— Pois não te parece? - perguntou ela.

Aquela conversa embaraçava Luísa; sentia-se corar, mas o crepúsculo, as palavras de Leopoldina davam-lhe como o enfraquecimento de uma tentação. Declarou todavia imoral semelhante idéia.

— Imoral, por quê?

Luísa falou vagamente nos deveres, na religião. Mas os deveres irritavam Lepoldina. Se havia uma coisa que a fizesse sair de si - dizia - era ouvir falar em deveres!...

— Deveres? Para com quem? Para um maroto como meu marido?

Calou-se, e passeando pela sala excitada:

— E em quanto à religião, histórias! A mim me dizia o Pe, Estêvão, o de luneta, que tem os dentes bonitos, que me dava todas as absolvições, se eu fosse com ele a Carriche!

— Ah, os padres... - murmurou Luísa.

— Os padres quê? São a religião! Nunca vi outra. Deus, esse, minha rica, está longe, não se ocupa do que fazem as mulheres.

Luísa achava horrível aquele modo de pensar. A felicidade, a verdadeira, segundo ela, era ser honesta...

— E a bisca em família! - resmungou Leopoldina, com ódio.

Luísa disse, animada:

— Pois olha que com as tuas paixões, umas atrás das outras...

Leopoldina estacou:

— O quê?

— Não te podem fazer feliz!

— Está claro que não! - exclamou a outra. - Mas... - procurou a palavra; não a quis empregar decerto; disse apenas com um tom seco: - Divertem-me!

Calaram-se. Luísa pediu o café.

Juliana entrou com a bandeja, trouxe luz; daí a pouco foram para a sala.

— Sabes quem me falou ontem de ti? - disse Leopoldina, indo estender-se no divã,

— Quem?

— O Castro.

— Que Castro?

— O de óculos, o banqueiro.

— Ah!

— Muito apaixonado por ti sempre.

Luísa riu.

— Doido, palavra! - afirmou Leopoldina.

A sala estava às escuras, com as janelas abertas; a rua esbatia-se num crepúsculo pardo, um ar lânguido e doce amaciava a noite.

Leopoldina esteve um momento calada; mas o champanhe, a meia obscuridade deram-lhe bem depressa a necessidade de cochichar confidenciazinhas. Estirou-se mais no divã, numa atitude toda abandonada; pôs-se a falar dele. Era ainda o Fernando, o poeta. Adorava-o.

— Se tu soubesses! - murmurava com um ar de êxtase. - É um amor de rapaz!

A sua voz velada tinha inflexões de uma ternura cálida. Luísa sentia-lhe o hálito e o calor do corpo, quase deitada também, enervada; a sua respiração alta tinha por vezes um tom suspirado; e a certos detalhes mais picantes de Leopoldina soltava um risinho quente e curto, como de cócegas... Mas passos fortes de botas de tachas subiram a rua, e no candeeiro defronte o gás saltou com um jato vivo. Uma branda claridade pálida penetrou na sala.

Leopoldina ergueu-se logo. - Tinha de ir já, já, ao acender do gás. Estava à espera, o pobre rapaz! Entrou no quarto, mesmo às escuras, a pôr o chapéu, buscar a sombrinha. - Tinha-lhe prometido, coitado, não podia faltar. Mas realmente embirrava de ir só. Era tão longe! Se a Juliana pudesse vir acompanhá-la...

— Vai, sim, filha! - disse Luísa.

Ergueu-se preguiçosamente com um grande ai!, foi abrir a porta, e deu de cara com Juliana, na sombra do corredor.

— Credo, mulher, que susto!

— Vinha saber se queriam luz...

— Não. Vá por um xale para acompanhar a senhora D. Leopoldina! Depressa!

Juliana foi correndo.

— E quando apareces tu, Leopoldina? - perguntou Luísa.

Logo que pudesse. Para a semana estava com idéias de ir ao Porto ver a tia Figueiredo, passar quinze dias na Foz...

A porta abriu-se.

— Quando a senhora quiser... - disse Juliana.

Fizeram grandes adeuses, beijaram-se muito. Luísa disse rindo ao ouvido de Leopoldina: - Sê feliz!

Ficou só. Fechou as janelas, acendeu as velas, começou a passear pela sala, esfregando devagar as mãos. E, sem querer, não podia desprender a idéia de Leopoldina que ia ver o seu amante! O seu amante!...

Seguia-a mentalmente: caminhava depressa decerto falando com Juliana; chegava; subia a escada, nervosa; atirava com a porta - e que delicioso, que ávido, que profundo o primeiro beijo! Suspirou. Também ela amava - e um mais belo, mais fascinante. Por que não tinha vindo?

Sentou-se ao piano preguiçosamente; pôs-se a cantar baixo, triste, o fado de Leopoldina:

— E por mais longe que esteia
Vejo-o sempre ao pé de mim!...

Mas um sentimento de solidão, de abandono, veio impacientá-la. Que seca, estar ali tão sozinha! Aquela noite cálida, bela e doce, atraía-a, chamava-a para fora, passeios sentimentais, ou para contemplações do céu, num banco de jardim, com as mãos entrelaçadas. Que vida estúpida, a dela! Oh! Aquele Jorge! Que idéia ir para o Alentejo!

As conversas de Leopoldina e a lembrança das suas felicidades voltavam-lhe a cada momento; uma pontinha de champanhe agitava-se no sangue. O relógio do quarto começou lentamente a dar nove horas - e de repente a campainha retiniu.

Teve um sobressalto; não podia ser ainda Juliana! Pôs-se a escutar assustada. Vozes falavam à cancela.

— Minha senhora - veio dizer Joana baixo - é o primo da senhora que se vem despedir...

Abafou um grito, balbuciou:

— Que entre!

Os seus olhos dilatados cravavam-se febrilmente na porta. O reposteiro franziu-se; Basílio entrou, pálido, com um sorriso fixo.

— Tu partes! - exclamou ela surdamente, precipitando-se para ele.

— Não! - E prendeu-a nos braços. - Não! Imaginei que me não recebias a esta hora, e tomei este pretexto.

Apertou-a contra si, beijou-a; ela deixava, toda abandonada; os seus lábios prendiam-se aos dele. Basílio deitou um olhar rápido, em redor, pela sala, e foi-a levando abraçado, murmurando: - Meu amor! Minha filha! - Mesmo tropeçou na pele de tigre, estendida ao pé do divã.

— Adoro-te!

— Que susto que tive! - suspirou Luísa.

— Tiveste?

Ela não respondeu; ia perdendo a percepção nítida das coisas; sentia-se como adormecer; balbuciou: - Jesus! Não! Não! - Os seus olhos cerraram-se.

Quando a campainha retiniu fortemente às dez horas, Luísa, havia momentos, sentara-se à beira do divã. Mal teve força de dizer a Basílio:

— Há de ser a Juliana, tinha ido fora...

Basílio cofiou o bigode, deu duas voltas na sala, foi acender um charuto. Para quebrar o silêncio sentou-se ao piano, tocou alguns compassos ao acaso, e, erguendo um pouco a voz, começou a cantarolar a ária do terceiro ato do Fausto.

— Al pallido chiarore
Dei ostri d'oro...

Luísa, através das últimas vibrações dos seus nervos, ia entrando na realidade; os seus joelhos tremiam. E então, ouvindo aquela melodia, uma recordação foi-se formando no seu espírito, ainda estremunhado: era uma noite, havia anos, em São Carlos, num camarote com Jorge; uma luz elétrica dava ao jardim, no palco, um tom lívido de luar legendário; e numa atitude extática e suspirante o tenor invocava as estrelas; Jorge tinha-se voltado, dissera-lhe: "Que lindo!" E o seu olhar devorava-a. Era no segundo mês do seu casamento. Ela estava com um vestido azul-escuro. E à volta, na carruagem, Jorge, passando-lhe a mão pela cinta, repetia:

— Al pallido chiarore
Dei astri d'oro...

E apertava-a contra si...

Ficara imóvel à beira do divã, quase a escorregar, os braços frouxos, o olhar fixo, a face envelhecida, o cabelo desmanchado. Basílio então veio sentar-se devagarinho junto dela. Em que estava a pensar?

— Nada.

Ele passou-lhe o braço pela cinta, começou a dizer que havia de procurar uma casinha para se verem melhor, estarem mais à vontade; não era mesmo prudente ali em casa dela...

E falando, voltava a cada momento o rosto, soprava para o lado o fumo do charuto.

— Não te parece que vir eu aqui, todos os dias, pode ser reparado?

Luísa ergueu-se bruscamente; lembrara-lhe Sebastião!... E com uma voz um pouco desvairada:

— Já é tão tarde! - disse.

— Tens razão.

Foi buscar o chapéu em bicos de pés, veio beijá-la muito, saiu.

Luísa sentiu-o acender um fósforo, fechar devagarinho a cancela.

Estava só; pôs-se a olhar em roda, como idiota. O silêncio da sala parecia-lhe enorme. As velas tinham uma chama avermelhada. Piscava os olhos, tinha a boca seca. Uma das almofadas do divã estava caída, apanhou-a.

E com um ar sonâmbulo entrou no quarto. Juliana veio trazer o rol. E já vinha com a lamparina, estava a arranjá-la...

Tinha tirado a cuia; subiu à cozinha quase a correr. A Joana, que estivera dormitando, espreguiçava-se com bocejos enormes.

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