O Primo Basílio (18 page)

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Authors: Eça de Queirós

A intervenção, as decisões de Julião pareciam-lhe um acréscimo de afronta. Caiu numa cadeira, com as mãos contra o peito, os olhos no teto.

— Oh! Se o Jorge aqui estivesse! Oh! Se ele aqui estivesse, Santo Deus!

Sebastião balbuciou aniquilado:

— Era para seu bem...

— Mas que mal me pode suceder?

E erguendo-se, indo de um móvel a outro, numa excitação:

— É o meu único parente. Fomos criados ambos; brincávamos juntos. Em casa de mamã, na Rua da Madalena, estava lá sempre. Ia lá jantar todos os dias. fôssemos irmãos. Em pequena trazia-me ao colo...

E amontoava detalhes daquela fraternidade, exagerando uns, inventando acaso, na improvisação da cólera.

— Vem aqui - acrescentava - está um bocado; fazemos música; ele toca ente, fuma um charuto, vai-se...

Instintivamente justificava-se.

Sebastião estava sem idéia, sem resolução. Parecia-lhe aquela uma outra Luísa, diferente, que o assustava; e quase curvava os ombros sob a estridência da sua voz, que nunca conhecera tão forte, vibrando numa loquacidade trapalhona.

Erguendo-se enfim, disse com uma dignidade melancólica:

— Eu entendi que era o meu dever, minha senhora.

Fez-se um silêncio grave. Aquele tom sóbrio, quase severo, obrigou-a a corar um pouco dos seus espalhafatos; baixou os olhos; disse embaraçada:

— Perdoe, Sebastião! Mas realmente!... Não, acredite, juro-lhe, estou-lhe muito obrigada em me avisar. Fez muito bem Sebastião!

Exclamou logo, vivamente:

— Para evitar qualquer calúnia dessas línguas danadas! Pois não é verdade?

Justificou então a sua intervenção, com muita amizade: às vezes por uma palavra arma-se uma intriga, e quando uma pessoa está prevenida...

— Decerto, Sebastião! - repetiu ela. - Fez perfeitamente bem em me avisar. Decerto!

Tinha-se sentado; o olhar reluzia-lhe febrilmente; e a cada momento limpava com o lenço os cantos secos da boca.

— Mas que hei de eu fazer, Sebastião! Diga!

Ele comovia-se agora de a ver assim ceder, aconselhar-se, quase lamentava gravidade das suas advertências, perturbar a alegria das suas intimidades. Disse:

— Está claro que deve ver seu primo; recebê-lo... Mas enfim, sempre é bom uma certa reserva, com esta vizinhança! Eu se fosse a si contava-lhe... explicava-lhe...

— Mas, por fim, que diz essa gente, Sebastião?

— Repararam. Quem seria? Quem não seria? Que vinha; que estava; o diabo!

Luísa ergueu-se impetuosamente:

— Eu bem tenho dito a Jorge! Tantas vezes lho tenho dito! Isto é uma rua impossível! Não se mexe um dedo que não espreitem, que não cochichem!

— Não têm que fazer...

Houve um silêncio. Luísa passeava pela sala, com a cabeça baixa, a testa franzida; e parando, olhando quase ansiosamente para Sebastião:

— O Jorge se soubesse é que tinha um desgosto! Santo Deus!

— Escusa de saber! - exclamou logo Sebastião. - Isto fica entre nós!

— Para o não afligir, não é verdade? - acudiu ela

— Está claro! Isto fica entre nós.

E Sebastião estendendo-lhe a mão, quase humildemente.

— Então não está zangada comigo, hem?

— Eu, Sebastião! Que tolice!

— Bem, bem. Acredite! - e espalmou a mão sobre o peito - eu entendi que era o meu dever. Porque enfim, a minha rica amiga não sabia nada...

— Estava bem longe!...

— Decerto. Bem, adeus. Não a quero maçar mais. - E com uma voz profunda, comovida: - Cá estou às ordens, hem!

— Adeus, Sebastião... Mas que gente! Por ver entrar o pobre rapaz três ou quatro vezes!...

— Uma canalha, uma canalha! - disse Sebastião, arregalando os olhos.

E saiu.

Apenas ele fechou a porta:

— Que desaforo! - exclamou Luísa. - Isto só a mim!

Porque a intervenção de Sebastião, no fundo, irritava-a mais que os mexericos da vizinhança! A sua vida, as suas visitas, o interior da sua casa era discutido, resolvido por Sebastião, por Julião, por tutti quanti! Aos vinte e cinco anos tinha mentores! Não estava má! E por quê, Santo Deus? Porque seu primo, o seu único parente vinha vê-la!...

Mas então, de repente, emudecia interiormente. Lembravam-lhe os olhares de Basílio, as suas palavras exaltadas, aqueles beijos, o passeio ao Lumiar. A sua alma corava baixo, mas o seu despeito seguia declamando alto: - decerto, havia um sentimento, mas era honesto, ideal, todo platônico!... Nunca seria outra coisa! Podia ter lá dentro, no fundo, uma fraqueza... Mas seria sempre uma mulher de bem, fiel, só de um!...

E esta certeza irritava-a então contra os palratórios da rua! Que de resto era lá possível, que só por verem entrar Basílio, quatro ou cinco vezes, às duas horas da tarde, começassem logo a murmurar, a cortar na pele?... Sebastião era um caturra, com terrores de ermitão! E que idéia, ir consultar Julião! Julião! Era ele, decerto, que o instigara a vir pregar, assustá-la, humilhá-la!... Por quê? Azedume, inveja! Porque Basílio tinha beleza, toalete, maneiras, dinheiro!... Se tinha!

As qualidades de Basílio apareciam-lhe então magníficas e abundantes como os atributos de um deus. E estava apaixonado por ela! E queria vir viver junto dela! O amor daquele homem, que tinha esgotado tantas sensações, abandonado decerto tantas mulheres, parecia-lhe como a afirmação gloriosa da sua beleza e a irresistibilidade da sua sedução.

A alegria que lhe dava aquele culto trazia-lhe o receio de o perder. Não o queria ver diminuído; queria-o sempre presente, crescendo, balouçando sem cessar diante dela, o murmúrio lânguido das ternuras humildes! Podia lá separar-se de Basílio! Mas se a vizinhança, as relações começavam a comentar, a cochichar... Jorge podia saber!... Aquela suposição o coração arrefecia-lhe... - Sebastião tinha razão, no fundo, era evidente!

Numa rua pequena, com doze casas, vir todos os dias, aquele lindo rapaz, e, agora que seu marido não estava... Era terrível! - Que havia de fazer, Santo Deus!...

A campainha retiniu com força; Leopoldina entrou.

Vinha furiosa com o cocheiro; que imaginasse ela, hem! Tinha parado ao Correio e o homem queria duas corridas. Uma canalha assim!...

E que calor, uf! - Atirou a sombrinha, as luvas; agitou as mãos no ar para descer o sangue, dando-lhes palidez; e diante do toucador, compondo ligeiramente os frisados do cabelo, com uma cor na pele, muito espartilhada, admirável corpete couraçado:

— Que tens tu, filha? Estás toda no ar!

Nada. Tinha-se zangado com as criadas...

— Ai! Estão insuportáveis! - Contou as exigências da Justina, os seus desmazelos. - E muito agradecida ainda que ela se me não vá! Quando a gente depende delas... - E pondo pó-de-arroz no rosto, com uma voz lenta: - Lá o meu senhor foi para o Campo Grande. Eu estive para ir jantar fora com...- Suspendeu-se, sorriu, e voltada para Luísa, mais baixo, com um tom alegre, muito sincero: - Mas olha, a falar a verdade, nem sabia onde, nem tinha dinheiro... Que ele coitado com a sua mesada mal lhe chega. Disse comigo: nada, vou ver a Luísa. Também os homens sempre, sempre, secam!... - Que tens tu para jantar? Não fizeste cerimônia, hem?

E com uma idéia súbita:

— Tens tu bacalhau?

Devia haver, talvez. Que extravagância! Por quê?

— Ai! - exclamou. - Manda-me assar um bocadinho de bacalhau! Meu marido detesta bacalhau! Aquele animal! Eu é a minha paixão. Com azeite e alho! - Mas calou-se, contrariada - Diabo!

— O quê?

— É que hoje não posso comer alho...

E entrou para a sala a rir. Foi tirar uma rosa do ramo de Sebastião, pô-la casa do corpete. Desejava ter uma sala assim - pensava, olhando em redor. Queria-a de repes azul, com dois grandes espelhos, um lustre de gás, e o seu retrato a óleo de corpo inteiro, decotada, ao pé de um rico vaso de flores...

Sentou-se ao piano, bateu rijamente o teclado, tocou motivos do Barba-Azul.

E vendo Luísa entrar:

— Mandaste arranjar o bacalhau?

— Mandei.

— Assado?

— Sim.

— E atirou, com a sua voz mordente, a sua canção querida da Grã-duquesa:

— Ouvi dizer que meu avô de vinho,
Era um tal amador...

Mas Luísa achava aquela música "espalhafatona"; queria alguma coisa triste, doce... O fado! Que tocasse o fado!...

Leopoldina exclamou logo:

— Ai, o fado novo! Tu não ouviste? É lindo! Os versos são divinos!

Preludiou, cantando com um balouçar lânguido da cabeça, o olhar erguido e turvo:

— O rapaz que eu ontem vi
Era moreno e bem feito...

— Tu não sabes isto, Luísa? Oh, filha! É o último! É de chorar! Recomeçou, com o tom muito quebrado. Era a história rimada de um amor infeliz. Falava-se nas "raivas do ciúme, nas rochas de Cascais, nas noites de luar, nos suspiros da saudade", todo o palavreado mórbido do sentimentalismo lisboeta. Leopoldina dava tons dolentes à voz, revirava um olhar expirante; uma quadra sobretudo enternecia-a; repetiu-a com paixão:

— Vejo-o nas nuvens do céu
Nas ondas do mar sem fim,
E por mais longe que esteia
Sinto-o sempre ao pé de mim.

— Lindo! - suspirava Luísa.

E Leopoldina terminava com ais! em que a sua voz se arrastava numa extensão desafinada.

Luísa, de pé junto do piano, sentia o cheiro do feno que ela usava; o fado, os versos entristeciam-na um pouco; e com o olhar saudoso seguia sobre o teclado os dedos ágeis e magros de Leopoldina, onde reluziam as pedras dos anéis que lhe tinha dado o Gama.

Mas Juliana entrou, vestida de passeio, com a sua cuia nova. Estava o jantar na mesa!

Leopoldina declarou que vinha a cair de fome! E a sala de jantar com as vidraças abertas, as verduras dos terrenos vagos defronte, um azul de horizonte onde se algodoavam nuvenzinhas muito brancas - alegrou-a; a sala de jantar dela tirava-lhe até o apetite; era uma tristeza; deitava para o saguão!

Pôs-se a depenicar bagos de uvas, a trincar bocadinhos de conserva - e reparando no retrato do pai de Jorge, desdobrando o guardanapo:

— Havia de ser divertido teu sogro! Tem cara de pândego!

— E há que tempos que não jantavam juntas! Desde quando?

— Desde o meu primeiro ano de casada - lembrou Luísa.

Leopoldina fez-se um pouco vermelha. Viam-se muito nesse tempo; Jorge ir às lojas ambas, aos confeiteiros, à Graça... A lembrança daquela camaradagem levou-a às recordações mais distantes do colégio. Tinha visto, havia dias, a Rita Pessoa, com o sobrinho. - Lembraste dele?

— O Espinafre?

— "Espinafre" ou não era no colégio o homem, o ideal, o herói; todas lhe escreviam bilhetes, desenhavam-lhe corações de onde saia uma fogueira; metiam-lhe no boné muito sebento ramos de flores de papel... E quando a Micaela foi apanhada, no cacifo dos baús, a devorá-lo de beijos!...

Luísa disse:

— Que horror!

— Não que a Micaela era doida!

Coitada! Tinha casado com um alferes, um homem que a espancava. Estava cheia de filhos...

— Isto é um vale de lágrimas! - resumiu Leopoldina, recostando-se.

Estava loquaz. Servia-se muito, com gula; depois picava um bocadinho na ponta do garfo, provava, deixava, punha-se a comer côdeas de pão que barrava de manteiga. E deleitava-se nas recordações do colégio! Que bom tempo!

— Lembraste quando estivemos de mal?

Luísa não se lembrava...

— Por tu teres dado um beijo na Teresa, que era o meu sentimento - disse Leopoldina.

Puseram-se a falar dos sentimentos. Leopoldina tivera quatro; a mais bonita era a Joaninha , a Freitas. Que olhos! E que bem feita! Tinha-lhe feito a corte um mês.

— Tolices! - disse Luísa corando um pouco.

— Tolices! Por quê?

Ai! Era sempre com saudades que falava dos sentimentos. Tinham sido as primeiras sensações, as mais intensas. Que agonia de ciúmes! Que delírio de reconciliações! E os beijos furtados! E os olhares! E os bilhetinhos, e todas as palpitações do coração, as primeiras da vida!

— Nunca - exclamou -, nunca, depois de mulher, senti por um homem o que senti pela Joaninha!... Pois podes crer...

Um olhar de Luísa deteve-a. - A Juliana! Diabo! Tinha-se esquecido! Constrangia-se muito, com o seu sorrisinho torcido, a figura de peito chato, o tique-taque dos metálico dos tacões.

— E que foi feito da Joaninha? - perguntou Luísa.

— Morrera tísica - e a voz de Leopoldina fez-se saudosa. Uma doença bem triste, não era? Mas não lhe tinha medo, ela! Batia no seio, bem formado:

— Isto é rijo, isto é são!

Juliana saiu, e Luísa observou logo:

— Vê no que falas, filha! Tem cuidado!

Leopoldina curvou-se:

— Ah! A respeitabilidade da casa! Tens razão! - murmurou.

E como Juliana entrava com o bacalhau assado, fez-lhe uma ovação!

— Bravo! Está soberbo!

Tocou-lhe com a ponta do dedo, gulosa; vinha louro, um pouco toscado, abrindo em lascas.

— Tu verás - dizia ela. - Não te tentas? Fazes mal!

Teve então um movimento decidido de bravura, disse:

— Traga-me um alho, Sra. Juliana! Traga-me um bom alho!

E apenas ela saiu:

— Eu vou ter logo com o Fernando, mas não me importa!... Ah! Obrigada, Sra. Juliana! Não há nada como o alho!...

Esborrachou-o em roda do prato, regou as lascas do bacalhau de um fio mole de azeite, com gravidade. - Divino! - exclamou. Tornou a encher o copo; achava aquilo uma pândega.

— Mas que tens tu?

Luísa com efeito parecia preocupada. Tinha suspirado baixo. Duas vezes, endireitando-se na cadeira, dissera a Juliana, inquieta:

— Parece que tocaram a campainha, vá ver.

Não era ninguém.

— Quem havia de ser? Não esperas teu marido, decerto.

— Ah! não!

E então Leopoldina, com os olhos no prato, partindo devagar, muito atenta, lascazinhas de bacalhau:

— E teu primo veio ver-te?

Luísa fez-se vermelha.

— Sim, tem vindo. Tem vindo várias vezes.

— Ah!

E depois de um silêncio:

— Ainda está bonito?

— Não está feio...

— Ah!

Luísa apressou-se a perguntar se tinha encomendado o vestido de xadrezinho? Não. E começaram a falar de toaletes, fazendas, lojas e preços... Depois, de conhecidas, de outras senhoras, de boatos - perdendo-se numa conversa de mulheres sós, miudinha e divagada, semelhante ao ramalhar de folhagens.

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