O Primo Basílio (16 page)

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Authors: Eça de Queirós

As janelas estavam cerradas ao sol faiscante; as panelas no lume faziam um romrom dormente; e toda a casa, muito silenciosa, parecia amodorrada no amolecimento do calor tórrido, quando Juliana entrou como uma rajada, atirou para o chão furiosa, uma braçada de roupa suja, e gritou:

— Raios me partam se não há um escândalo nesta casa que vai tudo raso!

Joana deu um salto estremunhada.

— Quem quer as coisas em ordem olha por elas! - berrava a outra com os olhos injetados. - Não é estar todo o dia na sala a palrar com as visitas!

A cozinheira foi fechar a porta precipitadamente, já assustada.

— Que foi, Sra. Juliana, que foi?

— Está com a mosca! Tem o sangue a ferver! Sangrias! Sangrias! Tem peguilhado por tudo! Não estou para a aturar, não estou!

E batia o pé com frenesi.

— Mas que foi? Que foi?

— Diz que os colarinhos tinham pouca goma; pôs-se a despropositar! Estou a aturar! Estou farta! Estou até aqui! - bradava, puxando a pele engelhada da garganta. - Pois que me não faça sair de mim! Que me vou, e pespego-lhe na cara por quê! Desde que aqui temos homem e pouca-vergonha, boas noites!... Quem quiser que se meta em alhadas...

— Ó Sra. Juliana, pelo amor de Deus! Jesus! - E a Joana apertava a cabeça nas mãos. - Ai, se a senhora ouve!

— Que ouça, digo-lho na cara! Estou farta! Estou farta!

Mas, de repente, fez-se branca como a cal; caiu sobre a cadeira de vime com as duas mãos contra o coração, os olhos em alvo.

— Sra. Juliana! - gritou Joana. - Sra. Juliana! Fale! Borrifou-a de água; sacudiu-a ansiosamente.

— Nossa Senhora nos valha! Nossa Senhora nos valha! Está melhor? Fale! Juliana deu um suspiro longo, de alivio, cerrou as pálpebras. E arquejava

devagarinho, muito prostrada.

— Como se sente? Quer um caldinho? É fraqueza; há de ser fraqueza... Foi a pontada - murmurou Juliana.

Ai! Aqueles frenesis matavam-na! - dizia a cozinheira, remexendo-lhe o caldo, muito pálida também. - A gente tinha de aturar os amos! Que tomasse a "substância", que sossegasse!...

Naquele momento Luísa abriu a porta. Vinha em colete e saia branca.

Que barulho era aquele?

A Sra. Juliana, que lhe tinha dado uma coisa, quase desmaiara...

Foi a pontada - balbuciou Juliana.

E erguendo-se, com um esforço:

— Se a senhora não precisa nada, vou ao médico...

— Vá, vá! disse Luísa logo. E desceu.

Juliana pôs-se a tomar o seu caldo com um vagar moribundo. Joana consolava-a baixo: - Também, a Sra. Juliana arrenegava-se por qualquer coisa. E quando a gente tem pouca saúde não há nada pior que enfrenesiar-se...

— É que não imagina! - e abafava a voz arregalando os olhos. - Tem estado de não se poder aturar! Está-se a vestir que nem para uma partida! Amarfanhou uns poucos de colares, atirou-os para o chão, que eu engomava que era uma porcaria, que não servia para nada... Ai! Estou farta! - repetia. - Estou farta!

— É ter paciência! Todos têm a sua cruz!

Juliana teve um sorriso lívido, ergueu-se com um grande "ai", escabichou os dentes, apanhou a roupa suja, e subiu ao sótão.

Daí a pouco, de luvas pretas, muito amarela, saiu.

Ao dobrar a esquina da rua, defronte do estanque, parou indecisa. Até ao médico era um estirão!... E estava, que lhe tremiam as pernas!... Mas também, largar três tostões para trem!...

— Psiu, psiu! - fez do lado uma voz doce.

Era a estanqueira, com o seu longo vestido de luto tingido, o seu sorriso desconsolado.

Que era feito da Sra. Juliana? A dar o seu passeio, hem?

Gabou-lhe a sombrinha preta de cabo de osso. De muito gosto - disse.

— E como ia de saúde?

Mal. Dera-lhe a pontada. Ia ao médico...

Mas a estanqueira não tinha fé nos médicos. Era dinheiro deitado à rua... Citou a doença do seu homem, os gastos, um ror de moedas. E para quê? Para o ver penar e morrer como se nada fosse! Era um dinheiro que sempre chorava!

E suspirou. Enfim, fosse feita a vontade de Deus! E lá por casa do senhor engenheiro?

— Tudo sem novidade.

— Ó Sra. Juliana, quem é aquele rapaz que vai agora por lá todos os dias?

Juliana respondeu logo:

— É o primo da senhora.

— Dão-se muito!...

— Parece.

Tossiu, e com um cumprimentozinho:

— Pois, muito boas tardes, Sra. Helena.

E foi resmungando:

— Ora, fica-te a chuchar no dedo, lesma!

Juliana detestava a vizinhança; sabia que a escarneciam, que a imitavam, que lhe chamavam a "Tripa Velha"!... Pois também dela não haviam de saber nada! Podiam rebentar de curiosidade! Vinham de carrinho! Boa! Tudo o que visse ou que lhe cheirasse havia de ficar guardadinho, lá dentro. - "Para uma ocasião" - pensava com rancor, sacudindo os quadris.

A estanqueira ficou à porta, despeitada. E o Paula dos móveis, que as vira conversar, veio logo, deslizando sutilmente nas suas chinelas de tapete:

— Então a Tripa Velha escorregou-se? Ai! Não se lhe tira nada!

O Paula enterrou as mãos nos bolsos, com tédio:

— Aquilo, a do Engenheiro besunta-lhe as mãos... É ela quem abre a portita de noite...

— Tanto não direi! Credo!

Paula fitou-a com superioridade:

— A Sra. Helena está ai ao seu balcão... Mas eu é que as conheço, as mulheres da alta sociedade! Conheço-as nas pontas dos dedos. É uma cambada!

Citou logo nomes, alguns ilustres; tinham amantes inumeráveis: até trintanários. Algumas fumavam, outras entortavam-se. E pior! E pior!

— E passeiam por ai, muito repimpadas de carrinho, à barba da gente de bem!

— Falta de religião! - suspirou a estanqueira.

O Paula encolheu os ombros:

— A religião é que é, Sra. Helena! Com os padres é que é!

E agitando furioso o punho fechado:

— Com os padres é uma choldra viva!

— Credo, Sr. Paula, que até lhe fica mal!...

E o carão amarelado da estanqueira tinha uma severidade de devota ofendida.

— Ora, histórias, Sra. Helena! - exclamou o homem com desprezo.

E bruscamente:

— Por que é que acabaram os conventos? Diga-me! Porque era um desaforo lá dentro.

— Oh, Sr. Paula! Oh, Sr. Paula! - balbuciava a Helena, recuando, encolhendo-se

O Paula atirava-lhe as impiedades como punhaladas.

— Um desaforo! De noite as freiras vinham por um subterrâneo ter com os vinhaça e mais vinhaça. E batiam o fandango em camisa! Anda isso por aí em todos os livros.

E erguendo-se nas chinelas:

— E os jesuítas, se vamos a isso! Sim! Diga!

Mas recuou, e levando a mão à pala do boné:

— Um criado da senhora - disse com respeito.

Era Luísa que passava, vestida de preto, o véu descido. Ficaram calados, a olhá-la.

— Que ela é muito bonita! - murmurou a estanqueira, com admiração.

O Paula franziu a testa:

— Não é mau bocado... - disse. E acrescentou, com desdém: - Pra quem gosta daquilo!...

Houve um silêncio. E o Paula rosnou:

— Não são as saias que me levam o tempo, nem disto!...

E bateu no bolso do colete, fazendo tilintar dinheiro.

Tossiu, pigarreou, e ainda áspero:

— Venha de lá um pataco de Xabregas.

Foi para a porta do estanco enrolar o cigarro, assobiar; mas os seus olhos arregalaram-se indignados; numa das janelas de cima na casa do Engenheiro, tinha avistado, por entre as vidraças abertas, a figura enfezada do Pedro, o carpinteiro.

Voltou-se para a estanqueira, e cruzando dramaticamente os braços:

— E agora, que a patroa vai à vida, lá está o rapazola a entender-se com a criada!

Soltou uma larga baforada de fumo, e com uma voz soturna:

— Aquela casa vai-se tornando um prostíbulo!

— Um que, Sr. Paula?

— Um prostíbulo, Sra. Helena! E como se dissesse um alcouce!

E, com passos escandalizados, o patriota afastou-se.

Luísa ia enfim ao campo com Basílio. Consentira na véspera, declarando logo que era só um passeio de meia hora, de carruagem, sem se apearem. Basílio ainda insistiu, falando em sombras de alamedas, uma merendinha, relvas Mas ela recusou, muito teimosa, rindo, dizendo: - Nada de relvas!...

E tinham combinado encontrar-se na Praça da Alegria. Chegou tarde, já depois das duas e meia, com o guarda-solinho muito carregado sobre o rosto, toda assustada.

Basílio esperava, fumando, num cupê, à esquina, debaixo de uma árvore. Abriu rapidamente a portinhola, e Luísa entrou fechando atrapalhadamente a sombrinha; o vestido prendeu-se ao estribo, esgaçou-se no rufo de seda; e achou-se ao lado dele, muito nervosa, ofegante, com o rosto abrasado, murmurando:

— Que tolice, que tolice esta!

Mal podia falar. O cupê partiu logo a trote. O cocheiro era o Pintéus, um batedor.

— Tão cansada, coitadinha! - disse-lhe Basílio muito meigo. Levantou-lhe o véu; estava suada; os seus largos olhos brilhavam da excitação, da pressa, do medo...

— Que calor, Basílio!

Quis descer um dos vidros do cupê.

— Não, isso não! Podiam vê-los! Quando passassem as portas...

— Para onde vamos nós?

E espreitava, levantando o estore.

— Vamos para o lado do Lumiar, é o melhor sitio. Não queres?

Encolheu os ombros. Que lhe importava? Ia sossegando; tinha tirado o véu ~ luvas; sorria, abanando-se com o lenço, de onde saia um aroma fresco.

Basílio prendeu-lhe o pulso, pôs-lhe muitos beijos longos, delicados, na pele fina, azulada de veiazinhas.

— Tu prometeste ter juízo! - fez ela com um sorriso cálido olhando-o de lado.

Ora! Mas um beijo, no braço! Que mal havia? Também era necessário não ser beata!

E olhava-a avidamente.

Os velhos estores do cupê corridos eram de seda vermelha, e a luz que os atravessava envolvi-a num tom igual, cor-de-rosa e quente. Os seus beiços tinham um escarlate molhado, a lisura sã de uma pétala de rosa; e ao canto do olho um ponto de luz movia-se num fluido doce.

Não se conteve, passou-lhe os dedos um pouco trêmulos nas fontes, nos cabelos, com uma carícia fugitiva e assustada, e com a voz humilde:

— Nem um beijo na face, um só?

— Um só? - fez ela.

Pousou-lho delicadamente ao pé da orelha. Mas aquele contato exasperou-lhe o desejo brutalmente; teve um som de voz soluçado; agarrou-a com sofreguidão, e atirava-lhe beijos tontos pelo pescoço, pela face, pelo chapéu...

— Não! Não! - balbuciava ela, resistindo. - Quero descer! Dize que pare! Batia nos vidros; esforçava-se por correr um, desesperada, magoando os dedos na dura correia suja.

Basílio pôs-se a suplicar; que lhe perdoasse! Que doidice, zangar-se por um beijo! Se ela estava tão linda!... Fazia-o doido. Mas jurava ir quieto, muito quieto...

A carruagem, ao pé das portas, rolava sacudida na calçada miúda; nas terras, aos lados, as oliveiras de um verde empoeirado estavam imóveis na luz branca e sobre a erva crestada o sol batia duramente numa fulguração continua.

Basílio tinha descido um dos vidros; o estore corrido palpitava brandamente, pôs-se então a falar-lhe ternamente de si, do seu amor, dos seus planos. Estava resolvido a vir estabelecer-se em Lisboa - dizia. - Não tencionava casar-se; "não compreendia nada melhor do que viver ao pé dela, sempre. Dizia-se desiludido, enfastiado. Que mais lhe podia oferecer a vida? Tinha tido as sensações dos amores efêmeros, as aventuras das longas viagens. Ajuntara alguma de seu - e sentia-se velho.

Repetia, fitando-a, tomando-lhe as mãos:

— Não é verdade que estou velho?

— Não muito - e os seus olhos umedeciam-se.

Ah! Estava! Estava! O que lhe apetecia agora era viver para ela, vir descansar nas da sua intimidade. Ela era a sua única família. - Fazia-se muito parente. - A família no fim de tudo é o que há de melhor ainda. Não te incomoda que eu fume?

E acrescentou, raspando o fósforo:

— O que há de bom na vida é uma afeição profunda como a nossa. Não é verdade? Contento-me com pouco, de resto. Ver-te todos os dias, conversar muito, saber que me estimas... - Por dentro do campo, ó Pintéus! - gritou com força pela portinhola.

O cupê entrou a passo no Campo Grande. Basílio ergueu os estores; um ar mais vivo penetrou. O sol caía sobre o arvoredo, transpassando-o de uma luz faiscante, formando no chão poeirento e branco sombras quentes de ramagens. Tudo tinha em redor um aspecto ressequido e exausto. Na terra gretada, a erva curta, crestada, fazia tons cinzentos. Na estrada, ao lado, arrastava-se uma poeira amarelada. Saloios passavam, amodorrados sobre o albardão, bamboleando as pernas, abrigados sob os vastos guarda-sóis escarlates; e a luz que vinha de um céu azul-ferrete, acabrunhador, fazia reluzir com uma radiação crua as paredes muito caiadas, as águas de algum balde esquecido às portas, todas as brancuras de pedras.

E Basílio continuava:

— Vendo tudo o que tenho lá fora, alugo aqui uma casinha em Lisboa, em Buenos Aires, talvez... Não te agrada? Dize...

Ela calava-se; aquelas palavras, as promessas, a que a voz dele metálica e velada dava um vigor mais amoroso, iam-na perturbando como a inebriação dum licor forte. O seu seio arfava.

Basílio baixou a voz, disse:

— Quando estou ao pé de ti sinto-me tão feliz; parece-me tudo tão bom!...

— Se isso fosse verdade! - suspirou ela, encostando-se para o fundo do cupé.

Basílio prendeu-lhe logo a cintura; jurou-lhe que sim! Ia pôr a sua fortuna em inscrições. Começou a dar-lhe provas: já falara a um procurador; citou-lhe o nome, um seco, de nariz agudo...

E apertando-a contra si, os olhos muito vorazes:

— E se fosse verdade, dize, que fazias?

— Nem eu sei - murmurou ela.

Iam entrando no Lumiar, e por prudência desceram os estores. Ela afastou um, e, espreitando, via fora passar rapidamente, ao lado do trem, árvores empoeiradas; um muro de quinta de um cor-de-rosa sujo, fachadas de casas mesquinhas; um ônibus desatrelado; mulheres sentadas ao portal, à sombra, catando os filhos; e um sujeito vestido de branco, de chapéu de palha, que estacou, arregalou os olhos para as cortinas fechadas do cupé. E ia desejando habitar ali numa quinta, longe da estrada; teria uma casinha fresca com trepadeiras em roda das janelas, parreiras. sobre pilares de pedra, pés de roseiras, ruazinhas amáveis sob árvores entrelaçadas, um tanque debaixo de uma tília, onde de manhã as criadas ensaboariam, bateriam a roupa, palrando. E ao escurecer, ela e ele, um pouco quebrados das felicidades da sesta, iriam pelos campos, ouvindo sob o céu que se estrela, o coaxar triste das rãs.

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