O Primo Basílio (6 page)

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Authors: Eça de Queirós

Deu um grande suspiro, pôs o leque sobre o rosto.

O Conselheiro ergueu-se secamente. E com a cabeça alta, as mãos atrás das costas; foi ao piano, perguntou a Luísa curvando-se:

— É alguma canção do Tirol, D. Luísa?

— Uma valsa de Strauss - murmurou-lhe Ernestinho, em bicos de pés, ao ouvido.

— Ah! Muita fama! Grande autor!

Tirou então o relógio. Eram horas, disse, de ir coordenar alguns apontamentos. Aproximou-se de Jorge, com solenidade:

— Jorge, meu bom Jorge, adeus! Cautela com esse Alentejo! O clima é nocivo, a estação traiçoeira!

E apertou-o nos braços com uma pressão comovida.

D. Felicidade punha a sua manta de renda negra.

— Já, D. Felicidade? - disse Luísa.

Ela explicou-lhe, ao ouvido:

— Já, sim, filha, que tenho estado a abarrotar, comi umas vagens e tenho estado!... E aquele homem, aquele gelo! O Sr. Ernesto vem para os meus sítios, hem?

— Como um fuso, minha senhora!

Tinha vestido o seu paletó de alpaca clara, fumava chupando, com as faces por uma boquilha enorme, onde uma Vênus se torcia sobre o dorso de um leão domado.

— Adeus, primo Jorge, saudinha e dinheiro, hem? Adeus! Quando for a Honra e Paixão cá mando um camarote à prima Luísa. Adeus! Saudinha!

Iam a sair. Mas o Conselheiro, à porta, voltando-se subitamente, com as abas do paletó deitadas para trás, a mão pomposamente apoiada no castão de que representava uma cabeça de mouro, disse com gravidade:

— Esquecia-me, Jorge! Tanto em Évora, como em Beja, visite os governadores civis! E eu lhe digo por quê: devo-lho como primeiros funcionários do distrito, e podem-lhe ser de muita utilidade nas suas peregrinações científicas!

E curvando-se profundamente:

— Al rivedere, como se diz em Itália.

Sebastião tinha ficado. Para arejar do fumo de tabaco, Luísa foi abrir as janelas; a noite estava quente e imóvel, de luar.

Sebastião pusera-se ao piano, e com a cabeça curvada, corria devagar o teclado.

Tocava admiravelmente, com uma compreensão muito fina da música. Outrora compusera mesmo uma meditação, duas valsas, uma balada: mas eram estudos muito trabalhados, cheios de reminiscências, sem estilo. - Da cachimônia não me sai nada - costumava ele dizer com bonomia, batendo na testa, sorrindo - mas lá com os dedos!...

Pôs-se a tocar um Noturno, de Chopin. Jorge sentara-se no sofá ao pé de Luísa.

— Já tens pronto o teu farnelzinho!... - disse-lhe ela.

— Bastam umas bolachas, filha. O que quero é o cantil com conhaque.

— E não te esqueças de mandar um telegrama logo que chegues!

— Pudera!

— Tu daqui a quinze dias, vens!

— Talvez...

Ela teve um gesto amuado.

— Ah, bem! Se não vieres vou ter contigo! A culpa é tua.

E olhando em redor:

— Que só que vou ficar!

Mordeu o beicinho, fitou o tapete. E de repente, com a voz ainda triste:

— Psiu, Sebastião! A malaguenha, faz favor?

Sebastião começou a tocar a malaguenha. Aquela melodia cálida, muito arrastada, encantava-a. Parecia-lhe estar em Málaga, ou em Granada, não sabia: era sob as laranjeiras, mil estrelinhas luzem; a noite é quente, o ar cheira bem; por baixo de um lampião suspenso a um ramo, um cantador sentado na tripeça mourisca faz gemer a guitarra; em redor as mulheres com os seus corpetes de veludilho encarnado batem as mãos em cadência; e ao largo dorme uma andaluza de romance e de zarzuela, quente e sensual, onde tudo são braços brancos que se abrem para o amor, capas românticas que roçam as paredes sombrias vielas onde luz o nicho do santo e se repenica a viola, serenos que invocam a Virgem Santíssima cantando as horas...

— Muito bem Sebastião! Gracias!

Ele sorriu, ergueu-se, fechou cuidadosamente o piano, e indo buscar o seu chapéu desabado:

— Então amanhã às sete? Cá estou, e vou-te acompanhar até ao Barreiro.

Bom Sebastião!

Foram debruçar-se na varanda para o ver sair. A noite fazia um silêncio alto, de uma melancolia plácida; o gás dos candeeiros parecia mortiço; a sombra que se recortava na rua, com uma nitidez brusca, tinha um tom quente e doce; a luz punha nas fachadas brancas claridades vivas, e nas pedras da calçada faiscações vidradas; uma clarabóia reluzia, a distância, como uma velha lâmina de prata; nada se movia; e instintivamente os olhos erguiam-se para as alturas, procuravam a lua branca, muito séria.

— Que linda noite!

A porta bateu, e Sebastião debaixo, na sombra:

— Dá vontade de passear, hem?

— Linda!

Ficaram à varanda preguiçosamente, olhando, detidos pela tranqüilidade, pela luz. Puseram-se a falar baixo da jornada. Àquela hora onde estaria ele? Já em Évora num quarto de estalagem, passeando monotonamente sobre um chão de tijolo Mas voltaria breve; esperava fazer um bom negócio com o Paco, o espanhol das minas de Portel, trazer talvez alguns centos de mil réis, e teriam então a doçura do mês de setembro; poderiam fazer uma jornada ao Norte, irem ao Buçaco, trepar aos altos, beber a água fresca das rochas, sob a espessura úmida das folhagens; irem a Espinho, e pelas praias, sentar-se na areia, no bom ar cheio de azote vendo o mar unido, de um azul metálico e faiscante, o mar do verão, com algum fumo de paquete que passa para o Sul ao longe muito adelgaçado. Faziam outros planos com os ombros muito chegados; uma felicidade abundante enchia-os deliciosamente. E Jorge disse:

— Se houvesse um pequerrucho, já não ficavas tão só!

Ela suspirou. Também o desejava tanto! Chamar-se-ia Carlos Eduardo. E via-o no seu berço dormindo, ou no colo, nu, agarrando com a mãozinha o dedo do pé, mamando a ponta rosada do seu peito... Um estremecimento de um deleite infinito correu-lhe no corpo. Passou o braço pela cinta de Jorge. Um dia seria, teria um filho decerto! E não compreendia o seu filho homem nem Jorge velho; via-os ambos do mesmo modo: um sempre amante, novo, forte; o outro sempre dependente do seu peito, da maminha, ou gatinhando e palrando, louro e cor-de-rosa. E a vida aparecia-lhe infindável, de uma doçura igual, atravessada do enternecimento amoroso, quente, calma e luminosa como a noite que os cobria.

— A que horas quer a senhora que a venha acordar? - disse a voz seca de Juliana.

Luísa voltou-se:

— Às sete já lhe disse há pouco, criatura.

Fecharam a janela. Em torno das velas uma borboleta branca esvoaçava. Era bom agouro!

Jorge prendeu-a nos braços:

— Vai ficar sem o seu maridinho, hem? - disse tristemente.

Ela deixou pesar o corpo sobre as mãos dele cruzadas, olhou-o com um longo olhar que se enevoava e escurecia, e envolvendo-lhe o pescoço com o gesto lento, harmonioso e solene dos braços, pousou-lhe na boca um beijo grave e profundo. Um vago soluço levantou-lhe o peito.

— Jorge! Querido! - murmurou.

Capítulo três

 

Havia doze dias que Jorge tinha partido e, apesar do calor e da poeira, Luísa vestia-se para ir a casa de Leopoldina. Se Jorge soubesse não havia de gostar não. Mas estava tão farta de estar só! Aborrecia-se tanto! De manhã ainda tinha os arranjos a costura, a toalete, algum romance... Mas de tarde!

A hora em que Jorge costumava voltar do ministério, a solidão parecia alargar-se em torno dela. Fazia-lhe tanta falta o seu toque de campainha, os seus passos no corredor!...

Ao crepúsculo, ao ver cair o dia, entristecia-se sem razão, caía numa vaga sentimentalidade; sentava-se ao piano, e os fados tristes, as cavatinas apaixonadas gemiam instintivamente no teclado, sob os seus dedos preguiçosos, no movimento abandonado dos seus braços moles. O que pensava em tolices então! E à noite, só, na larga cama francesa, sem poder dormir com o calor, vinham-lhe de repente terrores, palpites de viuvez.

Não estava acostumada, não podia estar só. Até se lembrara de chamar a tia Patrocínio, uma velha parenta pobre que vivia em Belém; ao menos era alguém; mas receou aborrecer-se mais ao pé da sua longa figura de viúva taciturna, sempre a fazer meia, com enormes óculos de tartaruga sobre um nariz de águia.

Naquela manhã pensara em Leopoldina, toda contente de ir tagarelar, rir, segredar, passar as horas do calor. Penteava-se em colete e saia branca; a camisinha decotada descobria os ombros alvos de uma redondeza macia, o colo branco e tenro, azulado de veiazinhas finas; e os seus braços redondinhos, um pouco vermelhos no cotovelo, descobriam por baixo, quando se erguiam prendendo as tranças, fiozinhos louros, frisando e fazendo ninho.

A sua pele conservava ainda o rosado úmido da água fria; havia no quarto um cheiro agudo de vinagre de toalete; os transparentes de linho branco descidos davam uma luz baça, com tons de leite.

Ah! Positivamente devia escrever a Jorge, que voltasse depressa! Que o que tinha graça era ir surpreendê-lo a Évora, cair-lhe no Tabaquinho, um dia, às três horas! E quando ele entrasse empoeirado e encalmado, de lunetas azuis, atirar-se-lhe ao pescoço! E à tardinha, pelo braço dele, ainda quebrada da jornada, coto um vestido fresco, ir ver a cidade. Pelas ruas estreitas e tristes admiravam-na muito. Os homens vinham às portas das lojas. Quem seria? É de Lisboa. É a do Engenheiro. - E diante do toucador, apertando o corpete do vestido, sorria àquelas imaginações, e ao seu rosto, no espelho.

A porta do quarto rangeu devagarinho.

— Que é?

A voz de Juliana, plangente, disse:

— A senhora dá licença que eu vá logo ao médico?

— Vá, mas não se demore. Puxe-me essa saia atrás. Mais. O que é que você tem?

— Enjôos, minha senhora, peso no coração. Passei a noite em claro.

Estava mais amarela, o olhar muito pisado, a face envelhecida. Trazia um vestido de merino preto escoado, e a cuia da semana de cabelos velhos.

— Pois sim, vá - disse Luísa. - Mas arranje tudo antes. E não se demore, hem?

Juliana subiu logo à cozinha. Era no segundo andar, com duas janelas de sacada para as traseiras, larga, ladrilhada de tijolo diante do fogão.

— Diz que sim, Sra. Joana - disse à cozinheira -, que podia ir. Vou-me vestir. Ela também está quase pronta. Fica vossemecê com a casa por sua!

A cozinheira fez-se vermelha, pôs-se a cantar, foi logo sacudir, estender na varanda um velho tapete esfiado; e os seus olhos não deixavam, defronte, uma casa baixa, pintada de amarelo, com um portal largo - a loja de marceneiro do tio João Galho, onde trabalhava o Pedro, o seu amante. A pobre Joana babava-se por ele. Era um rapazola pálido e afadistado; Joana era minhota, de Avintes, de família de lavrador, e aquela figura delgada de lisboeta anêmico seduzia-a com uma violência abrasada. Como não podia sair à semana, metia-o em casa, pela porta de trás, quando estava só; estendia então na varanda, para dar sinal, o velho tapete desbotado, onde ainda se percebiam os paus de um veado.

Era uma rapariga muito forte, com peitos de ama, o cabelo como azeviche, todo lustroso do óleo de amêndoas doces. Tinha a testa curta de plebéia teimosa. E as sobrancelhas cerradas faziam-lhe parecer o olhar mais negro.

— Ai! - suspirou Juliana. - A Sra. Joana é que a leva!

A rapariga ficou escarlate.

Mas Juliana acudiu logo:

— Olha o mal! Fosse eu! Boa! Faz muito bem!

Juliana lisonjeava sempre a cozinheira; dependia dela; Joana dava-lhe caldinhos às horas de debilidade, ou, quando ela estava mais adoentada, fazia-lhe um bife às escondidas da senhora. Juliana tinha um grande medo de "cair em fraqueza", e a cada momento precisava tomar a "sustância". Decerto, como feia e solteirona detestava aquele "escândalo do carpinteiro"; mas protegia-o, porque ele valia muitos regalos aos seus fracos de gulosa.

— Fosse eu! - repetiu -, dava-lhe o melhor da panela! Se a gente ia a ter escrúpulos por causa dos amos, boa! Olha quem! Vêem uma pessoa a morrer, e é como se fosse um cão.

E com um risinho amargo:

— Diz que me não demorasse no médico. É como quem diz: "cura-te Ou espicha depressa!"

Foi buscar a vassoura a um canto, e com um suspiro agudo:

— Todas o mesmo, uma récua!

Desceu, começou a varrer o corredor. - Toda a noite estivera doente: o quarto no sótão, debaixo das telhas, muito abafado, com um cheiro de tijolo cozido, dava-lhe enjôos, faltas de ar, desde o começo do verão; na véspera até vomitara! E já levantada às seis horas, não descansara, limpando, engomando, despejando, com a pontada no lado e todo o estômago embrulhado! - Tinha escancarado a cancela, e com grandes ais, atirava vassouradas furiosas contra as grades do corrimão.

— A senhora D. Luísa está em casa?

Voltou-se. Nos últimos degraus da escada estava um sujeito, que lhe pareceu estrangeirado. Era trigueiro, alto, tinha um bigode pequeno levantado, um ramo na sobrecasaca azul, e o verniz dos seus sapatos resplandecia.

— A senhora vai sair - disse ela olhando-o muito. - Faz favor de dizer quem é?

O indivíduo sorriu.

— Diga-lhe que é um sujeito para um negócio. Um negócio de minas.

Luísa, diante do toucador, já de chapéu, metia numa casa do corpete dois botões de rosa-chá.

— Um negócio! - disse muito surpreendida. - Deve ser algum recado para o Sr. Jorge, decerto! Mande entrar. Que espécie de homem é?

— Um janota!

Luísa desceu o véu branco, calçou devagar as luvas de peau de suède claras, deu duas pancadinhas fofas ao espelho na gravata de renda, e abriu a porta da sala. Mas quase recuou; fez "ah!" toda escarlate. Tinha-o reconhecido logo. Era o primo Basílio.

Houve um shake-hands demorado, um pouco trêmulo. Estavam ambos calados: - ela com todo o sangue no rosto, um sorriso vago; ele fitando-a muito, com um olhar admirado. Mas as palavras, as perguntas vieram logo, muito precipitadamente: - Quando tinha ele chegado? Se sabia que ele estava em Lisboa? Como soubera a morada dela?

Chegara na véspera no paquete de Bordéus. Perguntara no ministério; disseram4he que Jorge estava no Alentejo, deram-lhe a adresse...

— Como tu estás mudada, Santo Deus!

— Velha.

— Bonita!

— Ora!

E ele, que tinha feito? Demorava-se?

Foi abrir uma janela, dar uma luz larga, mais clara. Sentaram-se. Ele no sofá muito languidamente; ela ao pé, pousada de leve à beira de uma poltrona, toda nervosa.

Tinha deixado o "degredo" - disse ele. - Viera respirar um pouco à velha Europa. Estivera em Constantinopla, na Terra Santa, em Roma. O último ano em Paris! - Vinha de lá, daquela aldeola de Paris! - Falava devagar, recostado, com um ar íntimo, estendendo sobre o tapete, comodamente, os seus sapatos de verniz.

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