Authors: Eça de Queirós
— Ai, minha senhora! É um temporal desfeito! É a cântaros; está para todo o dia! Olha o ferro!
E muito curiosa; era fácil encontrá-la, de repente, cosida por detrás de uma porta com a vassoura a prumo, o olhar aguçado. Qualquer carta que vinha era revirada, cheirada... Remexia sutilmente em todas as gavetas abertas; vasculhava em todos os papéis atirados. Tinha um modo de andar ligeiro e surpreendedor. Examinava as visitas. Andava à busca de um segredo, de um bom segredo! Se lhe caía um nas mãos!
Era muito gulosa. Nutria o desejo insatisfeito de comer bem, de petiscos, de sobremesas. Nas casas em que servia ao jantar, o seu olho avermelhado seguia avidamente as porções cortadas à mesa; e qualquer bom apetite que repetia exasperava-a, como uma diminuição da sua parte. De comer sempre os restos ganhara o ar agudo - o seu cabelo tomara tons secos, cor de rato. Era lambareira: gostava de vinho; em certos dias comprava uma garrafa de oitenta réis, e bebia-a só, fechada, repimpada, com estalos da língua, a orla do vestido um pouco erguida, revendo-se no pé.
E nunca tivera um homem; era virgem. Fora sempre feia, ninguém a tentara; e, por orgulho, por birra, com receio de uma desfeita, não se oferecera, como vira muitas, claramente. O único homem que a olhara com desejo tinha sido um criado de cavalariça, atarracado e imundo, de aspecto facínora; a sua magreza, a sua cuia, o seu ar domingueiro tinham excitado o bruto. Fitava-a com um ar de bitídogue. Causara-lhe horror - mas vaidade. E o primeiro homem por quem ela sentira, um criado bonito e alourado, rira-se dela, pusera-lhe o nome de "Isca Seca. Não contou mais com os homens, por despeito, por desconfiança de si mesma. As rebeliões da natureza, sufocava-as; eram fogachos, flatos. Passavam. Mas faziam-na mais seca; e a falta daquela grande consolação agravava a miséria da sua vida.
Um dia teve, enfim, uma grande esperança. Entrara para o serviço da senhora D. Virgínia Lemos, uma viúva rica, tia de Jorge, muito doente, quase a morrer com um catarro de bexiga. A tia Vitória, a inculcadeira, preveniu-a:
— Tu trata a velha, apaparica-a, que ela o que quer é uma enfermeira que a sofra. É rica, não é nada apegada ao dinheiro; é capaz de te deixar uma independência!
Durante um ano Juliana, roída de ambição, foi a enfermeira da velha. Que zelos! Que mimos!
Virgínia era muito rabugenta; a idéia de morrer enfurecia-a; quanto mais ela ralhava com a sua voz gutural, mais Juliana se fazia serviçal. A velha, por fim, estava enternecida, gabava-a às pessoas que a vinham ver, chamava-lhe a sua providência. Tinha-a recomendado muito a Jorge.
— Não há outra! Não há outra! - exclamava.
— Pois apanhaste - dizia-lhe a tia Vitória. - Pelo menos deixa-te o teu conto de réis.
Um conto de réis! Juliana, de noite, enquanto a velha gemia no seu antigo leito de pau-santo, via o conto de réis à claridade mórbida que dava a lamparina, reluzir em pilhas de ouro inesgotável e prodigioso. Que faria com o dinheiro? E, à cabeceira da doente com um cobertor pelos ombros, os olhos dilatados e fixos, planeava: poria uma loja de capelista! Vinham-lhe logo lampejos vivos de outras
felicidades: um conto de réis era um dote, poderia casar, teria um homem!
Estavam acabadas as canseiras. ia jantar, enfim, o seu jantar! Mandar, enfim, a sua criada! A sua criada! Via-se a chamá-la, a dizer-lhe, de cima para baixo: Faça, vá, despeje, saia!" - Tinha contrações no estômago, de alegria. Havia de ser boa ama. Mas que lhe andassem direitas! Desmazelos, más respostas, não havia de sofrer a criadas! - E, impelida por aquelas imaginações, arrastava sutilmente as chinelas pelo quarto, falando só. - Não, desmazelos, não havia de Sofrer! Mantê-las bem, decerto, porque quem trabalha precisa meter para dentro! Mas havia de lho tirar do corpo. Ah! Lá isso, haviam de lhe andar direitas... A velha tinha então um gemido mais aflito.
— "É agora!" - pensava. - "Morre!"
E o seu olhar ansioso ia logo para a gaveta da cômoda, onde estava decerto os papéis. Mas não! A velha queria beber, ou voltar-se...
— Como se sente? - perguntava Juliana, com uma voz plangente. Melhor, Juliana, melhor - murmurava.
Supunha-se sempre melhor.
— Mas a senhora tem estado desinquieta! - dizia Juliana, despeitada da melhora.
— Não - suspirava - dormi bem!
— Isso não tem dormido... Tenho-a ouvido gemer! Tem estado toda a noite a gemer!
Queria argumentar com ela, convencê-la que estava pior! Convencer-se a si mesma que o alívio era efêmero, que ia morrer depressa! E todas as manhãs seguia o Dr. Pinto até à porta, com os braços cruzados, a face triste:
— Então, senhor doutor, não há esperança?
— Está por dias!
Queria saber os dias: dois? cinco?
— Sim, Sra. Juliana - dizia o velho, calçando as suas luvas pretas - uns dias, sete, oito.
— Oito dias!
E como a felicidade se aproximava, já tinha de olho três pares de botinas que vira na vidraça do Manuel Lourenço!
A velha, enfim, morreu. Nem a mencionava no testamento!
Veio-lhe uma febre. Jorge, agradecido pelos cuidados dela com a tia Virgínia, pagou-lhe um quarto no hospital, e prometeu tomá-la para criada de dentro. A que tinha, uma Emília muito bonita, ia casar.
Quando saiu do hospital para casa de Jorge, começava a queixar-se mais do coração. Vinha desiludida de tudo; tinha às vezes vontade de morrer. Ouviam-se todo o dia pela casa os seus ais. Luísa achava-a fúnebre.
Quis despedi-la ao fim de duas semanas, Jorge não consentiu; estava em dívida com ela, dizia. Mas Luísa não podia disfarçar a sua antipatia; - e Juliana começou a detestá-la; pôs-lhe logo um nome: a "Piorrinha"! Depois, dai a semanas, viu vir os estofadores; renovava-se a mobília da sala! A tia Virgínia deixara três contos de réis a Jorge - e ela, ela que durante um ano fora a enfermeira, humilde como um cão e fixa como uma sombra, aturando o mostrengo, tinha em paga ido para o hospital, com uma febre, das noitadas, das canseiras! Julgava-se vagamente roubada. Começou a odiar a casa.
Tinha para isso muitas razões, dizia: dormia num cubículo abafado; ao jantar não lhe davam vinho, nem sobremesa; o serviço dos engomados era pesado; Jorge e Luísa tomavam banho todos os dias, e era um trabalhão encher, despejar todas as manhãs as largas bacias de folha; achava despropositada aquela mania de se porem a chafurdar todos os dias que Deus deitava ao mundo; tinha servido vinte amos e nunca vira semelhante despropósito! A única vantagem - dizia ela à tia Vitória - era não haver pequenos; tinha horror a crianças! Além disso achava que o bairro era saudável; e como tinha a cozinheira "na mão", não é verdade? havia aquele regalo dos caldinhos, de algum prato melhor de vez em quando! Por isso ficava; se não, não era ela!
Fazia no entanto o seu serviço; ninguém tinha nada que lhe dizer. O olho aberto sempre e o ouvido à escuta, já se vê! E como perdera a esperança de se estabelecer, não se sujeitava ao rigor de economizar; por isso ia-se consolando com algumas pinguinhas, de vez em quando; e satisfazia o seu vício - trazer o catita. O pé era o seu orgulho, a sua mania, a sua despesa. Tinha-o bonito e pequenino.
— Como poucos - dizia ela -, não vai outro ao Passeio!
E apertava-o, aperreava-o; trazia os vestidos curtos, lançava-o muito para fora. A sua alegria era ir aos domingos para o Passeio Público, e ali, com a orla do vestido erguida, a cara sob o guarda-solinho de seda, estar a tarde inteira na poeira, no calor, imóvel, feliz - a mostrar, a expor o pé!
Pelas três horas da tarde, Juliana entrou na cozinha e atirou-se para uma cadeira, derreada. Não se tinha nas pernas de debilidade! Desde as duas horas que andava a arrumar a sala! Estava um chiqueiro. O peralta na véspera até deixara cinza de tabaco por cima das mesas! A negra é que as pagava. E que calor! Era de derreter! Uf!
— O caldinho há de estar pronto, hem! - disse, adocicando a voz. - Tira-mo, Sra. Joana, faz favor?
— Vossemecê hoje está com outra cara - notou a cozinheira.
— Ai! Sinto-me outra, Sra. Joana! Pois olhe que adormeci com dia, já luzia o dia!
— E eu! - Tinha tido cada sonho! Credo! Uma avantesma cor de fogo a passear-lhe por cima do corpo, e cada pancada na boca do estômago, como quem pisava uvas num lagar!
— Enfartamento - disse sentenciosamente Juliana, e repetiu:
— Pois eu sinto-me outra. Há meses que me não sinto tão bem!
Sorri com os seus dentes amarelados. O caldo que Joana deitava na malga branca com um vapor cheiroso, cheio de hortaliça dava-lhe uma alegria gulosa. Estendeu os pés, recostou-se, feliz, na boa sensação da tarde quente e luminosa, entrando largamente pelas duas janelas abertas.
O sol retirara-se da varanda, e sobre a pedra, em vasos de barro, plantas pobres encolhiam a sua folhagem chupada do calor; sobre uma tábua a um canto, numa velha panela bojuda, verdejava um pé de salsa muito tratado; o gato dormia sobre um esteirão; esfregões secavam numa corda; e para além alargava-se o azul vivo como um metal candente, as árvores dos quintais tinham tons ardentes do sol, os telhados pardos com as suas vegetações esguias coziam no
calor e pedaços de paredes caiadas despediam uma rebrilhação dura.
— Está de apetite, Sra. Joana, está de apetite! - dizia Juliana, remexendo o caldo devagarinho, com gula. A cozinheira de pé, com os braços cruzados
sobre o seu peito abundante, regozijava-se:
— O que se quer é que esteja a gosto.
— Está a preceito.
Sorriam, contentes da intimidade, das boas palavras. - E a campainha da porta que já tinha tocado, tornou a tilintar discretamente.
Juliana não se mexeu. Bafos de aragem quente entravam; ouvia-se ferver a panela no fogão, e fora o martelar incessante da forja; às vezes o arrulhar triste de duas rolas que viviam na varanda, numa gaiola de vime, punha na tarde abrasada uma sensação de suavidade.
A campainha retilintou, sacudida com impaciência.
— Com a cabeça, burro! - disse Juliana.
Riram. Joana fora sentar-se à janela, numa cadeira baixa; estendia os seus grossos pés, calçados de chinelas de ourelo; coçava-se devagarinho, no sovaco, toda repousada.
A campainha retiniu violentamente.
— Fora, besta! - rosnou Juliana, muito tranqüila.
Mas a voz irritada de Luísa chamou debaixo:
— Juliana!
— Que nem uma pessoa pode tomar a sustância sossegada! Raio de casa! Irra!
— Juliana! - gritou Luísa.
A cozinheira voltou-se, já assustada:
— A senhora zanga-se, Sra. Juliana.
— Que a leve o diabo!
Limpou os beiços gordurosos ao avental, desceu furiosa.
— Você não ouve, mulher? Estão a bater há uma hora!
Juliana arregalou os olhos espantada; Luísa tinha vestido um roupão novo de fular cor de castanho, com pintinhas amarelas!
— "Temos novidade! Temo-la grossa!" - pensou Juliana pelo corredor.
A campainha repicava. E no patamar, vestido de claro, com uma rosa ao peito, um embrulho debaixo do braço, estava o "sujeito do negócio das minas!"
— Aquele sujeito de ontem! - veio dizer, toda pasmada.
— Mande entrar...
— "Viva!" - pensou.
Galgou a escada da cozinha, disse logo da porta, com a voz aguda de júbilo:
— Está cá o peralta de ontem! Está cá outra vez! Traz um embrulho! Que lhe parece, Sra. Joana? Que lhe parece?
— Visitas... - disse a cozinheira.
Juliana teve um risinho seco. Sentou-se, acabou o seu caldo, à pressa.
Joana indiferente cantarolava pela cozinha, o arrulhar das rolas continuava langoroso e débil.
— Pois, senhores, isto vai rico! - disse Juliana.
Esteve um momento a limpar os dentes com a língua, o olhar fixo, refletindo. Sacudiu o avental, e desceu ao quarto de Luísa; o seu olhar esquadrinhador avistou logo sobre o toucador as chaves esquecidas da despensa; podia subir, beber um trago de bom vinho, engolir dois ladrilhos de marmelada... Mas possuía-a uma curiosidade urgente, e, em bicos de pés, foi agachar-se à porta que dava para a sala, espreitou. O reposteiro estava corrido por dentro; podia apenas sentir a voz grossa e jovial do sujeito. Foi de volta, pelo corredor, à outra porta, ao pé da escada; pôs o olho à fechadura, colou o ouvido à frincha. O reposteiro dentro estava também cerrado.
— "Os diabos calafetaram-se!" - pensou.
Pareceu-lhe que se arrastava uma cadeira, depois que se fechava uma vidraça. Os olhos faiscavam-lhe. Uma risada de Luísa sobressaiu; em seguida um silêncio; e as vozes recomeçaram num tom sereno e contínuo. De repente o sujeito ergueu a fala, e entre as palavras que dizia, de pé decerto, passeando, Juliana ouviu claramente: "Tu, foste tu!"
— Oh, que bêbeda!
Um tilintlim tímido da campainha, ao lado, assustou-a. Foi abrir. Era Sebastião muito vermelho do sol, com as botas cheias de pó.
— Está? - perguntou, limpando a testa suada.
— Está com uma visita, Sr. Sebastião!
E cerrando a porta sobre si, mas baixo:
— Um rapaz novo que já cá esteve ontem, um janota! Quer que vá dizer?
— Não, não, obrigado, adeus.
Desceu discretamente. Juliana voltou logo a encostar-se à porta, a orelha contra a madeira, as mãos atrás das costas; mas a conversação, sem saliência de vozes; tinha um rumor tranqüilo e indistinto. Subiu à cozinha.
— Tratam-se por tu! - exclamou. - Tratam-se por tu, Sra. Joana! E muito excitada:
— Isto vai à vela! Cáspite! Assim é que eu gosto delas!
O sujeito saiu às cinco horas. Juliana, apenas sentiu abrir-se a porta, veio a correr; viu Luísa no patamar, debruçada no corrimão, dizendo para baixo, com muita intimidade:
— Bem, não falto. Adeus.
Ficou então tomada de uma curiosidade que a alterava como uma febre. Toda a tarde, na sala de jantar, no quarto, esquadrinhou Luísa com olhares de lado. Mas Luísa, com um roupão de linho mais velho, parecia serena, muito indiferente.
— "Que sonsa!"
Aquela naturalidade despertava a sua bisbilhotice.
— "Eu hei de te apanhar, desavergonhada!" - calculava.
Afigurou-se-lhe que Luísa tinha os olhos um pouco pisados. Estudava-lhe as posições, os tons de voz. Viu-a repetir o assado - pensou logo:
— "Abriu-lhe o apetite"!
E quando Luísa ao fim do jantar se estendeu na voltaire com um ar quebrado.