Authors: Eça de Queirós
Mas enfim, vamos, de que lhe servia estar livre, só? - E de repente tudo o que poderia fazer, sentir, possuir, lhe apareceria numa perspectiva longa que fulgurava; aquilo era como uma porta, subitamente aberta e fechada, que deixa entrever, num relance, alguma coisa de indefinido, de maravilhoso, que palpita e faísca - Oh! Estava doida, decerto!
Escureceu. Foi para a sala, abriu a janela; a noite estava quente e espessa, com um ar de eletricidade e de trovoada. Respirava mal; olhava para o céu, desejando alguma coisa fortemente, sem saber o quê.
O moço do padeiro embaixo, como sempre, tocava o fado; aqueles sons entravam-lhe agora na alma, com a brandura de um bafo quente e a melancolia de um gemido.
Encostou a cabeça à mão como uma lassidão. Mil pensamentozinhos corriam-lhe no cérebro como os pontos de luz que correm num papel que se queimou; lembrava-lhe sua mãe, o chapéu novo que lhe mandara M.me François, o tempo que faria em Sintra, a doçura das noites quentes sob a escuridão das ramagens...
Fechou a janela, espreguiçou-se; e sentada na causeuse, no seu quarto, ficou ali, numa imobilidade, pensando em Jorge, em lhe escrever, em lhe pedir
que viesse. Mas bem depressa aquele cismar começou a quebrar-se a cada momento como uma tela que se esgaça em rasgões largos, e por trás aparecia logo como uma intensidade luminosa e forte a idéia do primo Basílio.
As viagens, os mares atravessados tinham-no tornado mais trigueiro; a melancolia da separação dera-lhe cabelos brancos. Tinha sofrido por ela! - E no fim onde estava o mal? Ele jurara-lhe que aquele amor era casto, passando-se todo na alma. Tinha vindo de Paris, o pobre rapaz, assim lho jurara, a ver, uma semana, quinze dias. E havia de dizer-lhe: "Não voltes; vai-te"?
Quando a senhora quiser o chá... - disse da porta do quarto Juliana.
Luísa deu um suspiro alto como acordando. Não; que trouxesse a lamparina, mais tarde.
Eram dez horas. Juliana foi tomar o seu chá à cozinha. O lume ia-se apagando, o candeeiro de petróleo estendia nos cobres dos tachos reflexos avermelhados.
— Hoje houve coisa, Sra. Joana - disse Juliana sentando-se. - Está toda no ar! E é cada suspiro! Ali houve-a e grossa.
Joana, do outro lado, com os cotovelos na mesa e a face sobre os punhos, pestanejava de sono.
— A Sra. Juliana, também, deita tudo para o mal - disse.
— É que era necessário ser tola, Sra. Joana!
Calou-se, cheirou o açúcar; era um dos seus despeitos; gostava dele bem refinado - e aquele açúcar mascavado e grosso, que punha no chá um gosto de formigas, exasperava-a.
— Este é pior que o do mês passado! Para uma pobre de Cristo tudo é bom! - rosnou muito amargamente.
E depois de uma pausa repetiu:
— É que era necessário ser tola, Sra. Joana!
A cozinheira disse preguiçosamente:
— Cada um sabe de si...
— E Deus de todos - suspirou Juliana.
E ficaram caladas.
Luísa tocou a campainha embaixo.
— Que teremos nós agora? Está com as cócegas.
Desceu. Voltou com o regador, muito enfastiada:
— Quer mais água! Olha a mania; pôs-se agora a chafurdar à meia-noite! Sempre a gente as vê...
Foi encher o regador, e enquanto a água da torneira cantava no fundo da lata:
— E diz que lhe faça amanhã ao almoço um bocado de presunto frito, do salgado. Quer picantes!
E com muito escárnio:
— Sempre a gente vê coisas! Quer picantes!
À meia-noite a casa estava adormecida e apagada. Fora, o céu enegrecera mais; relampejou, e um trovão seco estalou, rolou.
Luísa abriu os olhos estremunhada; começara a cair uma chuva grossa e sonora; a trovoada arrastava-se, ao longe. Esteve um momento escutando as goteiras que cantavam sobre o lajedo; a alcova abafava, descobriu-se; o sono tinha fugido, e de costas, o olhar fixo na vaga claridade que vinha de fora da lamparina, seguia o tique-taque do relógio. Espreguiçou-se, e uma certa idéia, uma certa visão foi-se formando no seu cérebro, completando-se tão nítida, quase tão visível, que se revirou na cama devagar, estirou os braços, lançou-os em roda do travesseiro, adiantando os beiços secos - para beijar uns cabelos negros onde reluziam fios brancos.
Sebastião tinha dormido mal. Acordou às seis horas e desceu ao quintal em chinelas. Uma porta envidraçada da sala de jantar abria para um terraçozinho, largo apenas para três cadeiras de ferro pintado e alguns vasos de cravos; dali, quatro degraus de pedra desciam para o quintal; era uma horta ajardinada, muito cheia, com canteirinhos de flores, saladas muito regadas, pés de roseiras junto dos muros, um poço e um tanque debaixo de uma parreirita, e árvores; terminava por um outro terraço assombreado de uma tília, com um parapeito para uma rua baixa e solitária; defronte corria um muro de quintal muito caiado. Era um sitio recolhido, de uma paz aldeã. Muitas vezes Sebastião, de madrugada, ia para ali fumar o seu cigarro.
Era uma manhã deliciosa. Havia um ar transparente e fino; o céu arredondava-se a uma grande altura com o azulado de certas porcelanas e, aqui e além, uma nuvenzinha algodoada, molemente enrolada, cor de leite; a folhagem tinha verde lavado a água do tanque uma cristalinidade fria; pássaros chilreavam de leve com vôos rápidos.
Sebastião estava debruçado para a rua, quando a ponteira de uma bengala, passos vagarosos cortaram o silêncio fresco. Era um vizinho de Jorge, o Cunha Rosado, o doente de intestinos; arrastava-se, curvado, abafado num cachenê e num paletó cor de pinhão, com a barba grisalha desmazelada, a crescer.
— Já a pé vizinho! - disse Sebastião.
O outro parou, ergueu a cabeça lentamente.
— Oh, Sebastião! - disse com uma voz plangente. - Ando a passear os meus leites, homem!
— A pé?
— Ao princípio ia na burrita até fora de portas, mas diz que me fazia bem o passeiozito a pé...
Encolheu os ombros com um gesto triste de dúvida, de desconsolação.
— E como vai isso? - perguntou Sebastião, muito debruçado para a rua, com afeto.
O Cunha teve um sorriso desolado nos seus beiços brancos:
— A desfazer-se!
Sebastião tossiu, embaraçado, sem achar uma consolação.
— Mas o doente, com as duas mãos apoiados à bengala, uma súbita radiação de interesse no olhar amortecido:
— Ó Sebastião, um rapaz alto, que eu tenho visto todos estes dias entrar pala casa do Jorge, é o Basílio de Brito, pois não é? O primo da mulher? O filho do João de Brito?
— É, sim, por quê?
O Cunha fez: "Ah! Ah!" com uma grande satisfação.
— Bem dizia eu! - exclamou. - Bem dizia eu! E aquela teimosa que não! Que não!...
E então explicou com uma tagarelice súbita, e cansaços de voz:
— O meu quarto é para a rua, e todos os dias, como eu estou quase sempre pela janela para espairecer... tenho visto aquele rapaz, a modo estrangeirado, entrar para lá... todos os dias! "Este é o Basílio de Brito!" disse eu. Mas a minha mulher que não! Que não!... Que diabo, homem! Eu tinha quase a certeza... Não conheço eu outra coisa!... Até ele esteve para casar com a D. Luísa. Oh! Eu sei essa história na ponta dos dedos... Morava ela na Rua da Madalena!
Sebastião disse vagamente:
— Pois é, é o Brito...
— Bem dizia eu!
Ficou um momento imóvel, fitando o chão, e refazendo uma voz dolente:
— Pois, vou-me arrastando até casa.
Suspirou. E arregalando os olhos:
— Quem me dera a sua saúde, Sebastião!
E dizendo adeus, com um gesto da mão calçada de luva de casimira escura, afastou-se, curvado, rente do muro, conchegando com o braço ao ventre, o seu largo paletó cor de pinhão.
Sebastião entrou preocupado. Todo o mundo começava a reparar, hem! Pudera! Um rapaz novo, janota, vir todos os dias de trem, estar duas, três horas! Uma vizinhança tão chegada, tão maligna!...
Ao começo da tarde saiu. Teve vontade de procurar Luísa; mas sem saber por quê, sentia um grande acanhamento; como que receava encontrá-la diferente ou com outra expressão... E subia a rua devagar, sob o seu guarda-sol, hesitando, quando um cupê que descia a trote largo veio parar à porta de Luísa.
Um sujeito saltou rapidamente, atirou o charuto, entrou. Era alto, com um bigode levantado, trazia uma flor, no peito; devia ser o primo Basílio, pensou. O cocheiro limpou o suor da testa, e, cruzando as pernas, pôs-se a enrolar o cigarro.
Ao ruído do trem o Paula postou-se logo à porta, de boné carregado, as mãos enterradas no bolso, com olhares de revés; a carvoeira defronte, imunda, disforme de obesidade e de prenhez, veio embasbacar com um pasmo lorpa na face oleosa; a criada do doutor abriu precipitadamente a vidraça. Então o Paula atravessou rapidamente a rua faiscante de sol, entrou no estanque; daí a um momento apareceu à porta, com a estanqueira, de carão viúvo; e cochichavam, cravavam olhares pérfidos nas varandas de Luísa, no cupê! O Paula, dali, arrastando as chinelas de tapete, foi segredar com a carvoeira; provocou-lhe uma risada que lhe sacudia a massa do seio; e foi enfim estacar à sua porta entre um retrato de D. João VI e duas velhas cadeiras de couro, assobiando com júbilo. No silêncio da rua ouvia-se num piano, a compasso de estudo, a Oração de uma virgem.
Sebastião ao passar olhou maquinalmente para as janelas de Luísa.
— Rico calor, Sr. Sebastião! - observou o Paula curvando-se. - E um regalo estar à fresca!
Luísa e Basílio estavam muito tranqüilos, muito felizes na sala, com as portadas meio cerradas, numa penumbra doce. Luísa tinha aparecido de roupão branco, muito fresca, com um bom cheiro de água de alfazema.
— Eu venho assim mesmo - disse ela. - Não faço cerimônias.
Mas assim é que ela estava linda! Assim é que a queria sempre! - exclamou Basílio muito contente, como se aquele roupão de manhã fosse já uma promessa da sua nudez.
Vinha muito tranqüilo, afetava um tom de parente. Não a inquietou com palavras veementes, nem com gestos desejosos; falou-lhe do calor, de uma zarzuela que vira na véspera, de velhos amigos que encontrara, e disse-lhe apenas que tinha sonhado com ela.
O quê? Que estavam longe, numa terra distante, que devia ser a Itália, tantas as estátuas que havia nas praças, tantas as fontes sonoras que cantavam nas bacias de mármore; era num jardim antigo, sobre um terraço clássico; flores raras transbordavam de vasos florentinos; pousando sobre as balaustradas esculpidas, pavões abriam as caudas; e ela arrastava devagar sobre as lajes quadradas a cauda longa do seu vestido de veludo azul. De resto, dizia, era um terraço como de São Donato, a vila do Príncipe Demidoff - porque lembrava sempre as suas intimidades ilustres, e não se descuidava de fazer reluzir a glória das suas viagens.
E ela, tinha sonhado?
Luísa corou. - Não, tinha tido muito medo da trovoada. Tinha ouvido a trovoada, ele?
— Estava a cear no Grêmio, quando trovejou.
— Costumas cear?
Ele teve um sorriso infeliz. - Cear! Se se podia chamar cear ir ao Grêmio rilhar um bife córneo e tragar um Colares peçonhento!
E fitando-a:
— Por tua causa, ingrata!
— Por sua causa?
— Por quem, então? Por que vim eu a Lisboa? Por que deixei Paris?
— Por causa dos teus negócios...
Ele encarou-a severamente:
— Obrigado - disse, curvando-se até ao chão.
E a grandes passadas pela sala soprava violentamente o fumo do seu charuto.
Veio sentar-se bruscamente ao pé dela. - Não, realmente era injusta. Se em Lisboa, era por ela. Só por ela!
Fez uma voz meiga; perguntou-lhe se lhe tinha realmente um bocadinho de amor muito pequenino, assim... - Mostrava o comprimento da unha.
Riram.
— Assim, talvez.
E o peito de Luísa arfava.
Ele então examinou-lhe as unhas; admirou-lhas e aconselhou-lhe o verniz que usam as cocotes, que lhes dá um lustre polido; ia-se apossando da sua mão, pôs-lhe um beijo na ponta dos dedos; chupou o dedo mínimo, jurou que era muito doce; arranjou-lhe com um contato muito tímido uns fios de cabelos que se tinham soltado - e, disse, tinha um pedido a fazer-lhe!
Olhava-a com uma suplicação.
— Que é?
— É que venhas comigo ao campo. Deve estar lindo no campo!
Ela não respondeu; dava pancadinhas leves nas pregas moles do roupão.
— É muito simples - acrescentou ele. - Tu vais-me encontrar a qualquer parte, longe daqui, está claro. Eu estou à espera de ti com uma carruagem, tu saltas para dentro e fouette, cocher!
Luísa hesitava.
— Não digas que não.
— Mas onde?
— Onde tu quiseres. A Paço de Arcos, a Loures, a Queluz. Dize que sim.
A sua voz era muito urgente; quase ajoelhara.
— Que tem? É um passeio de amigos, de irmãos.
— Não! Isso não!
Basílio zangou-se, chamou-lhe beata. Quis sair. Ela veio tirar-lhe o chapéu da mão, muito meiga, quase vencida.
— Talvez, veremos - dizia.
— Dize que sim! - insistia. - Sê boa rapariga!
— Pois sim, amanhã veremos; amanhã falaremos.
Mas no dia seguinte, muito habilmente, Basílio não falou no passeio, nem no campo. Não falou também do seu amor, nem dos seus desejos. Parecia muito alegre, muito superficial; tinha-lhe trazido o romance de Belot, À Mulher de Fogo. E sentando-se ao piano, disse-lhe canções de café-concerto, muito picantes; imitava a rouquidão acre e canalha das cantoras; fê-la rir.
Depois falou muito de Paris; contou-lhe a moderna crônica amorosa, anedotas, paixões chiques. Tudo se passava com duquesas, princesas, de um modo dramático e sensibilizador, às vezes jovial, sempre cheio de delícias. E, de todas as mulheres de que falava, dizia recostando-se: era uma mulher distintíssima; tinha naturalmente o seu amante...
O adultério aparecia assim um dever aristocrático. De resto a virtude parecia ser, pelo que ele contava, o defeito de um espírito pequeno, ou a ocupação reles de um temperamento burguês...
E quando saiu, disse, como recordando-se:
— Sabes que estou com minhas idéias de partir?...
Ela perguntou, um pouco descorada:
— Por quê?
Basílio disse, muito indiferente:
— Que diabo faço eu aqui?... Esteve um momento a fitar o tapete, deu um suspiro, e como dominando-se:
— Adeus, meu amor...
E saiu.
Quando nessa tarde Luísa entrou na sala de jantar, levava os olhos vermelhos.