O Primo Basílio (28 page)

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Authors: Eça de Queirós

Foi logo arranjar o saco de marroquim. Meteu lenços, alguma roupa branca, o estojo das unhas, o rosário que lhe dera Basílio, pós-de-arroz, algumas jóias que tinham pertencido à mamã... Quis levar as cartas de Basílio também... Tinha-as guardadas num cofre de sândalo, no gavetão do guarda-vestidos. Espalhou-as no regaço; abriu uma, de onde caiu uma florzinha seca; outra que tinha, na dobra, a fotografia de Basílio. De repente, pareceu-lhe que não estavam completas! Tinha sete; cinco bilhetes curtos, e duas cartas - a primeira que ele lhe escrevera, tão terna! E a última no dia do arrufo! Contou-as... Faltava, com efeito, a primeira, e dois bilhetes! Tinha-lhas roubado, também!... Ergueu-se lívida. Ah, que infame! Veio-lhe uma raiva de subir ao sótão, lutar com ela, arrancar-lhas, esganá-la!... Que lhe importava, por fim! - E deixou-se cair na causeuse, aniquilada. - Que ela tivesse uma, duas, todas - era a mesma desgraça!

E muito excitada, foi preparar o vestido preto que devia levar, o chapéu, um xale-manta...

O cuco cantou dez horas. Entrou então na alcova; pôs o castiçal sobre a mesinha, ficou a olhar o largo leito com o seu cortinado de fustão branco. Era a última vez que ali dormia! Fora ela que bordara aquela coberta de crochê no primeiro ano de casada; não havia um malha que não correspondesse a uma alegria. Jorge às vezes vinha vê-la trabalhar, e, calado, considerava-a com um sorriso, ou falava-lhe baixo enrolando devagar nos dedos o fio de algodão grosso! Ali dormira com ele três anos: o seu lugar era de lá, do lado da parede... Fora naquela cama que ela estivera doente, com a pneumonia. Durante semanas ele não se deitara - a velá-la, a conchegar-lhe a roupa, a dando-lhe os caldos, os remédios, com toda a sorte de palavras doces que lhe faziam tão bem!... Falava-lhe como a criancinha pequena; dizia-lhe: "Isso vai passar, amanhã estás boa, vamos passear". Mas o seu olhar ansioso estava marejado de lágrimas! Ou então pedia-lhe: "Melhora, sim? Faze-me a vontade, minha querida, melhora!..." E ela queria tanto melhorar, que sentia como uma ligeira onda de vida que lhe voltava, lhe refrescava o sangue!

Nos primeiros dias da convalescença era ele que a vestia; ajoelhava-se para lhe calçar os sapatos, embrulhava-a no roupão, vinha estendê-la na causeuse, sentava-se ao pé dela a ler-lhe romances, desenhar-lhe paisagens, recortar-lhe soldados de papel. E dependia toda dele; não tinha mais ninguém no mundo para a tratar, para sofrer, chorar por ela - senão ele! Adormecia sempre com as mãos nas suas, porque a doença deixara-lhe um vago medo dos pesadelos da febre; e o pobre Jorge, para a não acordar, ali ficava com a mão presa, horas, sem se mover. Deitava-se vestido num colchãozito ao pé dela. Muitas vezes, acordando de noite, o tinha visto a limpar as lágrimas; de alegria, decerto, porque ela então estava salva! O médico, o bom Dr. Caminha, tinha-o dito: "Está livre de perigo; agora é refazer esse corpinho". E Jorge, o pobre Jorge, coitado, sem dizer nada, tinha tomado as mãos do velho - tinha-as coberto de beijos!

E agora, quando ele soubesse, quando ele voltasse! Quando ao entrar ali na alcova - visse os dois travesseirinhos, ainda! Ela iria longe, com outro, por caminhos estranhos, ouvindo outra língua. Que horror! E ele ali estaria, naquela casa só, chorando, abraçado a Sebastião. Quantas memórias dela para o torturar! Os seus vestidos, as suas chinelinhas, os seus pentes, toda a casa! Que vida triste, a dele! Dormiria ali só! Já não teria ninguém para o acordar de manhã com um beijinho, passar-lhe o braço pelo pescoço, dizer-lhe: "É tarde, Jorge!" Tudo acabará para ambos. Nunca mais! - Rompeu a chorar, de bruços sobre a cama...

Mas a voz de Juliana falou alto no corredor com Joana. Ergueu-se aterrada. Viria ter com ela, aquela infame? Os passos achinelados afastaram-se devagar, e Joana entrou com o rol e com a lamparina.

— A Sra. Juliana - disse - levantou-se um momento, mas diz que ainda está mal, coitada. Foi-se deitar. A senhora não precisa mais nada?

— Não - disse da alcova.

Despiu-se; e, prostrada, adormeceu profundamente.

Juliana em cima não dormia. A dor passara-lhe - e agitava-se sobre o enxergão, "com o diabo da espertina"! Como tantas outras noites, nas últimas semanas. Porque desde que apanhara a carta no sarcófago vivia numa febre; mas a alegria era tão aguda, a esperança tão larga que a sustentavam, lhe davam saúde! Deus enfim tinha-se lembrado dela! Desde que Basílio começara a vir a casa, tivera logo um palpite, uma coisa que lhe dizia que tinha chegado enfim a sua vez! A primeira satisfação fora naquela noite em que achara, depois de Basílio sair às dez horas, a travessinha de Luísa caída ao pé do sofá. Mas que explosão de felicidade, quando, depois de tanta espionagem, de tanta canseira, apanhou enfim a carta no sarcófago! Correu ao sótão, leu-a avidamente, e quando viu a importância da "coisa" arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas; arremessou a sua alma perversa para as alturas, bradando em si, num triunfo:

— Bendito seja Deus! Bendito seja Deus!

E que havia de fazer aquilo? - foi então a sua inquietação. Ora pensava em a vender a Luísa por uma forte soma... Mas onde tinha ela o dinheiro? Não; o melhor era esperar a volta de Jorge, e com ameaças de a publicar, extorquir-lhe um ror de libras por meio de outra pessoa, já se vê, e ela à capa! E em certos dias em que a figura, as toaletes, as passeatas de Luísa a irritavam mais, vinham-lhe venetas de sair para a rua, chamar os vizinhos, ler o papel, pô-la mais rasa que a lama, vingar-se da cabra!

Foi a tia Vitória que a calmou, e a dirigiu. Disse-lhe logo que para a armadilha ser completa era necessário uma carta do janota. Começara então o lento trabalho de lha apanhar! Fora preciso muita finura, muita chave experimentada, duas feitas por moldes de cera, paciência de gato, habilidades de ratoneiro! Mas pilhou-a, e que carta! Tinha-a lido com a tia Vitória - que rira, rira!... Sobretudo o bilhete em que Basílio lhe dizia: "Hoje não posso ir, mas espero-te amanhã às duas; mando-te essa rosinha, e peço-te que faças o que fizeste à outra, trazê-la no seio, porque é tão bom quando vens assim, sentir-te o peitinho perfumado!... " A tia Vitória, sufocada, a quis mostrar à sua velha amiga, a Pedra, a Pedra gorda, que estava na saleta.

A Pedra torceu-se! Os seus enormes seios, pendentes como odres mal-cheios tinham sacudidelas furiosas de hilaridade. E com as mãos nas ilhargas, rubra, roncando, com o seu vozeirão de trombone:

— Essa é das boas, tia Vitória! Essa é de mestre. Não, isso merece ir para os papéis. Ai os bêbedos! Raios do diabo!

A tia Vitória, então, disse muito seriamente a Juliana:

— Bem; agora tens a faca e o queijo! Com isso já podes falar do alto. E esperar a ocasião. Muito bons modos, cara prazenteira, sorrisos a fartar para ela não desconfiar, e o olho alerta. Tens o rato seguro, deixa-o dar ao rabo!

E desde esse dia Juliana saboreava com delicias, com gula, muito consigo - aquele gozo de a ter "na mão", a Luisinha, a senhora, a patroa, a Piorrinha! Via-a aperaltar-se, ir ao homem, cantarolar, comer bem - e pensava com uma voluptuosidade felina: "Anda, folga, folga, que eu cá ta tenho armada!" Aquilo dava-lhe um orgulho perverso. Sentia-se vagamente senhora da casa. Tinha ali fechada na mão a felicidade, o bom nome, a honra, a paz dos patrões! Que desforra!

E o futuro, estava certo! Aquilo era dinheiro, o pão da velhice. Ah! Tinha-lhe chegado o seu dia! Todos os dias rezava uma salve-rainha de graças a Nossa Senhora, mãe dos homens!

Mas agora, depois daquela cena com Luísa - não podia ficar de braços cruzados, com as cartas na algibeira. Devia sair de casa, pôr-se em campo, fazer alguma coisa. O quê? A tia Vitória é que havia de dizer...

Logo pela manhã às sete horas, sem tomar o seu café, sem falar a Joana, desceu devagar, saiu.

A tia Vitória não estava em casa. Gente na saleta esperava. O Sr. Gouveia, com a borla do barretinho muito arrebitada, escrevinhava, dobrado, cuspilhando o seu catarro. Juliana deu os bons-dias em redor, e sentou-se a um canto, direita com a sua sombrinha nos joelhos.

Conversava-se; e uma mulher de trinta anos, picada das bexigas, que estava sentada no canapé, depois de ter dado um sorriso a Juliana, continuou, voltada para uma gordita com um xale de quadrados vermelhos:

— Pois não imagina, Sra. Ana, não faz idéia! É uma desgraça! É todas as noites como um carro. As vezes até acordo com o barulho que ele faz a falar só, a tropeçar na escada... Eu, do que tenho mais medo, é que o demônio adormeça com a luz e haja um rogo. Ah! É de todo!

— Quem? - perguntou um rapazola bonito, com uma blusa de trintanário, que falava de pé a um criado alto, de suíças e gravata branca enxovalhada.

— O Cunha, o filho do meu patrão. É uma desgraça!

— Piteireiro, hem? - disse o rapazola, enrolando o cigarro.

— Um horror! Eu pela manhã nem posso entrar no quarto, que é um cheiro. A mãe, coitadinha, chora, rala-se; o rapaz já esteve para ser posto fora do emprego. Ai! Não estou nada contente, nada contente!

— Pois olhe que por lá também há desgosto grande - disse, baixando a voz, a do xale de quadrados.

Os dois homens aproximaram-se.

— O senhor - continuou ela com gestos aterrados - é um desaforo com a cunhada!... A senhora sabe, e aquilo são questões de dia e de noite! As duas irmãs andam numa bulha pegada. O homem toma as dores da rapariga; a mulher põe-se aos gritos... Ai! Aquilo vem a acabar mal!

— E então se a gente tem lá o seu descuido - disse o da gravata branca com indignação - é aqui del rei, e daqui e dali!

— Lá a sua gente é sossegada, Sr. João - observou a picada das bexigas.

— É boa gente. As raparigas namoradeiras... Proveito das criadas, apanham o seu vestido, a sua placa... Mas os velhotes é uma santa gente, a verdade é a verdade! E come-se bem!

E voltando-se para o trintanário, batendo-lhe no ombro, com uma voz que o admirava e que o invejava:

— Mas isto sim! Isto é que é levá-la! O rapazola sorriu com satisfação:

— Ora! São mais as vozes do que as nozes!

— Vá lá, mostra lá - disse o da gravata branca tocando-lhe com o cotovelo -, mostra lá!

O rapaz fez-se rogado, e depois de gingar da cintura, arregaçando a blusa, tirou do bolso do colete de riscadinho um relógio de ouro.

— Muito bonito! Rica prenda! - disseram as duas mulheres.

— Suor do meu rosto - fez ele, acariciando o queixo.

O da gravata branca indignou-se:

— Ora seu maroto! - E baixo para as raparigas: - Suor do seu rosto, hem! - É o serafim da patroa, uma senhora da alta que aquilo são tudo sedas, muitíssimo boa mulher, um bocado entradota, mas muitíssimo boa mulher; recebe destas lembranças, um relógio de um par de moedas - e ainda fala!

O rapazola disse então, enterrando as mãos na algibeira:

— E se quiser agora, há de largar a corrente!

— Há de lhe custar muito! - exclamou o da gravata branca.

— Uma gente que tem aí pela Baixa correntezas de casas! Metade da Rua dos Retroseiros é dela!

— Mas muito agarrada! - disse o rapazola. E bamboleando o corpo, com o cigarro ao canto da boca: - Estou com ela há dois meses, e ainda se não desabotoou senão com o relógio e três libras em ouro!... Que eu, como quem diz, um dia passo-lhe o pé! - E cofiando o cabelo para a testa: - Não faltam mulheres! E das que têm Dom!

Mas a tia Vitória entrou, muito azafamada, com o xale no braço; e vendo Juliana:

— Olá! Por cá! Tive que dar umas voltas; estou na rua desde às seis. Bons dias, Sra. Teodósia; bons dias, Ana. Viva, temos por cá o alfenim! Entra cá pra dentro, Juliana! Eu já venho, meus pombinhos, é um instante!

Levou-a para o outro quarto, para o lado do saguão:

— E então, que há de novo?

Juliana pôs-se a contar longamente a cena da véspera, o desmaio...

— Pois minha rica - disse a tia Vitória -, o que está feito, está feito; não há tempo a perder; é mãos à obra! Tu vais ao Brito, ao hotel, e entendes-te com ele.

Juliana recusou-se logo; não se atrevia, tinha medo...

A tia Vitória refletiu, coçando o ouvido; foi dentro, cochichou com o tio Gouveia, e voltando, fechando a porta do quarto:

— Arranja-se quem vá. Tens tu as cartas?

Juliana tirou da algibeira uma velha carteirinha de marroquim escarlate. Mas hesitou um momento, olhou a tia Vitória com desconfiança.

— Tens medo de largar os papéis, criatura? - exclamou ofendida a velha. - Arranja-te tu; então arranja-te tu...

Juliana deu-lhas logo. Mas que as guardasse, que tivesse cautela!...

— A pessoa - disse a tia Vitória - vai amanhã à noite falar com o Brito, e pede-lhe um conto de réis!

Juliana teve um deslumbramento. Um conto de réis! A tia Vitória estava a brincar!

— Ora essa! Que pensas tu? Por uma carta, que quase não tinha mal nenhum, pagou uma pessoa que bate aí o Chiado de carruagem - ainda ontem a vi com uma pequerrucha que tem - pagou trezentos mil réis. E em belas notas. Pagou-os o janota, já se sabe; foi o janota que pagou. Se fosse outro, não digo, mas o Brito! É rico, é um mãos-rotas; cai logo...

Juliana, muito branca, agarrou-lhe o braço, trêmula:

— Oh, tia Vitória! Dava-lhe um corte de seda.

— Azul! Até já te digo a cor!

— Mas o Brito é homem muito teso, tia Vitória; se lhe tira as cartas, se lhe faz alguma!

A tia Vitória. fitou-a com desdém:

— Sais-me uma simplória! Imaginas que eu mando lá algum tolo? Nem as cartas vão; o que vai é uma cópia! Olha quem! O melro que lá há de ir!

E depois de refletir um momento:

— Tu vai-te para casa...

— Não, lá isso não volto...

— Também tens razão. Até ver em que param as modas, vem cá dormir. Jantas cá hoje; tenho uma rica pescada...

— Mas não haverá perigo, tia Vitória, se o Brito vai à polícia...

A tia Vitória encolheu os ombros, e impacientada:

— Olha, vai-te, que me estás a enfrenesiar! Polícia! Qual polícia! Essas coisas levam-se lá à polícia... Deixa a coisa comigo! Adeus - e às quatro para jantar, hem!

Juliana saiu como levada pelo ar! Um conto de réis! Era o conto de réis que voltava, o que já um dia entrevira, que lhe fugira, que lhe vinha agora cair na mão, com um tlintlim de libras e um frufru de notas! E o cérebro enchia-se-lhe confusamente de perspectivas diferentes, todas maravilhosas; um mostrador de capelista onde ela venderia! Um marido ao seu lado, às horas da ceia! Pares de botinas das boas, das chiques. Onde poria o dinheiro? No banco? Não; no fundo da arca - para estar mais seguro, mais à mão!

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