O Primo Basílio (30 page)

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Authors: Eça de Queirós

A sua fortuna tinha sido feita com negócio de borracha, no alto Paraguai; a grandeza da especulação trouxera a formação de uma companhia, com capitais brasileiros; mas Basílio e alguns engenheiros franceses queriam resgatar as ações brasileiras, que eram um empecilho, formar em Paris uma outra companhia, e dar ao negócio um movimento mais ousado. Basílio partira para Lisboa entender-se com alguns brasileiros, e comprara as ações habilmente.

A prolongação daquele incidente amoroso tornava-se uma perturbação na sua vida prática... E, agora que a aventura tomava um aspecto secante, convinha passar o pé!

A porta abriu-se e o Visconde Reinaldo entrou - afogueado, de lunetas azuis, furioso.

Vinha de Benfica! Morto, absolutamente morto com aquele calor, de um país de negros. Tivera a estúpida idéia de ir visitar uma tia - que o fizera logo membro de uma associação para não sei que diabo de que creche, e que lhe pregara moral! Também, que idéia de colegial - ir visitar a tia! Porque realmente, se havia uma coisa que lhe causasse repugnância, eram as ternuras de família!

— E tu, que queres tu? Eu vou-me meter num banho até ao jantar!

— Sabes o que me sucede? - disse Basílio, erguendo-se.

— O quê?

— Imagina. O caso mais estúpido.

— O marido apanhou-te?

— Não, a criada!

— Shocking! - exclamou Reinaldo com nojo.

Basílio contou miudamente "o caso". E cruzando os braços diante dele:

— E agora?

— Agora é safar-te!

E levantou-se.

— Onde vais tu?

— Vou ao banho.

Que esperasse, que diabo; queria falar com ele...

— Não posso! - exclamou Reinaldo com um egoísmo frenético. Vem tu cá abaixo! Posso perfeitamente conversar na água!

Saiu, berrando por William, o seu criado inglês.

Quando Basílio desceu aos banhos, Reinaldo estirado com voluptuosidade na tina, de onde saía um forte cheiro de água de Lubin, exclamou, deleitando-se no seu conforto:

— Então cartinha apanhada nos papéis sujos!

— Não, Reinaldo, mas francamente estou embaraçado; que achas tu que eu faça?

— As malas, menino!

E sentado na tina, ensaboando devagar o seu corpo magro:

— Aí está o que é fazer amor às primas da Patriarcal Queimada!

— Oh! - fez Basílio, impaciente.

— Oh, quê? - E, coberto de flocos de espuma, com as mãos apoiadas ao rebordo de mármore da tina: - Pois tu achas isso decente, uma mulher que toma a cozinheira por confidente, que lhe está na mão, que perde a carta nos papéis sujos, que chora, que pede duzentos mil réis, que se quer safar isso é lá amante, isso é lá nada! Uma mulher que, como tu mesmo disseste, usa meias de tear!

— Meu rico, é uma mulher deliciosa!

O outro encolheu os ombros, descrente. Basílio deu logo provas; descreveu belezas do corpo de Luísa; citou episódios lascivos.

O teto e os tabiques envernizados de branco refletiam a luz, com tons macios de leite; a exalação da água tépida aumentava o calor morno; e um cheiro fresco de sabão e água de Lubin adoçava o ar.

— Bem! Estás pelo beiço - resumiu Reinaldo com tédio, estirando-se.

Basílio teve um movimento de ombro, que repelia aquela suposição grotesca.

— Mas dize, então, queres ficar-lhe agarrado às saias ou queres desembaraçar-te dela? Mas a verdade, venha a verdade!

— Eu - disse logo Basílio, chegando-se à tina, baixo - se me pudesse desembaraçar decentemente...

— Oh, desgraçado! Tens uma ocasião divina! Ela saiu como uma bicha, dizes tu. Bem; escreve-lhe uma carta, que vendo que ela deseja romper, não a queres importunar, e partes. Os teus negócios estão concluídos, não é verdade? Escusas de negar; o Lapierre disse-me que sim. Bem, então sê decente; manda fazer as malas, e livra-te da sarna.

E tomando a esponja, deixava cair grandes golpes de água pela cabeça, pelos ombros, soprando, regalado na frescura aromática.

— Mas também - disse Basílio - deixá-la agora naquela atrapalhação com a criada! No fim é minha prima...

Reinaldo agitou os braços, com hilaridade.

— Esse espírito de família é ótimo! Vai lá, idiota; dize-lhe que és obrigado a partir, os teus negócios, etc., e mete-lhe umas poucas de notas na mão.

— É brutal...

— E caro!

Basílio disse então:

— Olha que também é uma dos diabos, a pobre rapariga apanhada pela criada...

Reinaldo estirou-se mais, e disse com júbilo:

— Estão a estas horas a esgadanharem-se uma à outra!

Recostou-se numa beatitude; quis saber as horas; declarou que estava confortável; que se sentia feliz! Contanto que o John se não tivesse esquecido de frapper o champanhe!

Basílio torcia o bigode, calado. Revia a sala de Luísa de repes verde, a figura horrível de Juliana com a sua enorme cuia... Estariam com efeito a ralhar, a descompor-se? Que pulhice que era tudo aquilo! Positivamente devia partir.

— Mas que pretexto lhe hei de eu dar para sair de Lisboa?

— Um telegrama! Não há nada como um telegrama! Telegrafa já ao teu homem em Paris, ao Labachardie, ou Labachardette, ou o que é, que te mande logo este despacho: "Parta, negócios maus, etc." É o melhor!

— Vou fazê-lo - disse Basílio erguendo-se, muito decidido.

— E partimos amanhã? - gritou Reinaldo.

— Amanhã.

— Por Madri?

— Por Madri.

— Salero! - Pôs-se de pé na tina, entusiasmado, a escorrer, e com movimentos aduncos de magricela saltou para fora, embrulhou-se no roupão turco. O seu criado William entrou logo, sutilmente, ajoelhou-se, tomou-lhe um pé entre as mãos, secou-lho com precauções, pôs-se respeitosamente a calçar-lhe a meia de seda preta com ferradurinhas bordadas.

Na manhã seguinte, um pouco antes do meio-dia, Joana veio bater discretanente à porta do quarto de Luísa, e com a voz baixa - desde o desmaio falava-lhe sempre baixo, como a uma convalescente:

— Está ali o primo da senhora.

Luísa ficou surpreendida. Estava ainda de robe de chambre, e tinha os olhos vermelhos de chorar; pôs num instante um pouco de pó-de-arroz, alisou o cabelo, entrou na sala.

Basílio, vestido de claro, sentara-se melancolicamente no mocho do piano. Trazia um ar grave, e, sem transição, começou a dizer: - que apesar de ela se ter zangado na véspera, ele considerava ainda tudo "como dantes". Viera porque naquele momento não se podiam separar sem algumas explicações, sobretudo sem resolver definitivamente o caso da carta... E com um gesto triste, como contendo lágrimas:

— Porque eu vejo-me forçado a sair de Lisboa, minha querida!

Luísa, sem olhar para ele, fez um sorriso mudo, muito desdenhoso. Basílio acrescentou logo:

— Por pouco tempo, naturalmente; três semanas ou um mês... Mas enfim tenho de partir... Se fossem só os meus interesses! - Encolheu os ombros com desdém. - Mas são interesses de outros... E aqui está o que eu recebi está manhã.

Estendeu-lhe um telegrama. Ela conservou-o um momento, sem o abrir; a sua mão fazia tremer o papel.

— Lê, peço-te que leias!

— Para quê? - fez ela.

Mas leu baixo: "Venha, graves complicações. Presença absolutamente necessária. Parta já".

Dobrou o papel, entregou-lho.

— E partes, hem?

— É forçoso.

— Quando?

— Esta noite.

Luísa ergueu-se bruscamente, e estendendo-lhe a mão:

— Bem, adeus.

Basílio murmurou:

— És cruel, Luísa!... Não importa! Em todo o caso há um negócio que é necessário terminar. Falaste à mulher?

— Está tudo arranjado - respondeu ela, franzindo a testa. Basílio tomou-lhe a mão, e quase com solenidade:

— Minha filha, eu sei que és muito orgulhosa, mas peço-te que digas a verdade. Eu não te quero deixar em dificuldades. Falaste-lhe?

Ela retirou a mão, e com uma impaciência crescente:

— Arranjou-se tudo; arranjou-se tudo!...

Basílio parecia muito embaraçado; estava mesmo um pouco pálido: enfim, tirando uma carteira da algibeira, começou:

— Em todo o caso é possível, é natural (nós não sabemos com quem lidamos), é natural que haja outras exigências... - abriu a carteira, tomou um sobrescrito pequenino e cheio.

Luísa seguia, fazendo-se vermelha, os movimentos de Basílio.

— Por isso, para te poderes entender melhor com ela, sempre me parece bom deixar-te algum dinheiro.

— Tu estás doido? - exclamou ela.

— Mas...

— Tu queres-me dar dinheiro? - A sua voz tremia.

— Mas enfim...

— Adeus! - E ia sair da sala, indignada.

— Luísa, pelo amor de Deus! Tu não me compreendeste...

Ela parou; disse precipitadamente, como impaciente por acabar:

— Compreendi, Basílio, obrigada. Mas não, não é necessário. Estou nervosa, é o que é... Não prolonguemos mais isto... Adeus...

— Mas sabes que volto, dentro de três semanas...

— Bem, então nos veremos...

Ele atraiu-a, deu-lhe um beijo na boca, encontrou os seus lábios passivos e inertes.

Aquela frieza irritou-lhe a vaidade. Apertou-a contra o peito; disse-lhe baixo, pondo muita paixão na voz:

— Nem um beijo me queres dar?

Nos olhos de Luísa passou um ligeiro clarão; beijou-o rapidamente, e recuando:

— Adeus.

Basílio esteve um momento a olhá-la; teve como um leve suspiro:

— Adeus! - E da porta, voltando-se, com melancolia: - Escreve-me ao menos. Sabes a minha morada. Rua Saint Florentin, 22.

Luísa chegou-se à janela. Viu-o acender o charuto na rua, falar ao cocheiro, saltar para o cupê, fechar com força a portinhola, sem um olhar para as janelas!

O trem rolou. Era o no 10 ... Nunca mais o veria! Tinham palpitado no mesmo amor, tinham cometido a mesma culpa. - Ele partia alegre, levando as recordações romanescas da aventura; ela ficava, nas amarguras permanentes do erro. E assim era o mundo!

Veio-lhe um sentimento pungente de solidão e de abandono. Estava só, e a vida aparecia-lhe como uma vasta planície desconhecida, coberta da densa noite, eriçada de perigos!

Entrou no quarto devagar, foi-se deixar cair no sofá; viu ao pé o saco de marroquim, que preparara na véspera para fugir; abriu-o, pôs-se a tirar lentamente os lenços, uma camisinha bordada - encontrou a fotografia de Jorge! Ficou com ela na mão, contemplando o seu olhar leal, o seu sorriso bom. - Não, não estava no mundo só! Tinha-o a ele! Amava-a aquele; nunca a trairia, nunca a abandonaria! - E colando os beiços ao retrato, umedecendo-o de beijos convulsivos, atirou-se de bruços, lavada em lágrimas dizendo: - Perdoa-me, Jorge, meu Jorge, eu querido Jorge, Jorge da minha alma!

Depois de jantar, Joana veio dizer-lhe timidamente:

— A senhora não lhe parece que seria bom ir saber da Sra. Juliana?

— Mas onde quer você ir saber? - perguntou Luísa.

— Ela, às vezes vai à casa de uma amiga, uma inculcadeira, para os lados do Carmo. Talvez lhe tivesse dado alguma, esteja mal. Mas também não mandar recado desde ontem pela manhã... Coisa assim! Eu podia ir saber...

— Pois bem, vá, vá.

Aquela desaparição brusca inquietava também Luísa. Onde estava? Que fazia? Parecia-lhe que alguma coisa se tramava em segredo, longe dela; que viria de repente estalar-lhe sobre a cabeça, terrivelmente...

Anoiteceu. Acendeu as velas. Tinha um certo medo de estar assim só em casa; e, passeando pelo quarto, pensava que àquela hora Basílio em Santa Apolônia comprava alegremente o seu bilhete, instalava-se no vagão, acendia o charuto, e daí a pouco, a máquina arquejando levá-lo-ia para sempre! Porque não acreditava "na demora de três semanas, um mês"! Ia para sempre, safava-se! E apesar de o detestar sentia que alguma coisa dentro em si se partia com aquela separação, e sangrava dolorosamente!

Eram quase nove horas quando a campainha retiniu com pressa. Julgou que seria Joana de volta; foi abrir com um castiçal - e recuou vendo Juliana, amarela, muito alterada.

— A senhora faz favor de me dar uma palavra?

Entrou no quarto atrás de Luísa, e imediatamente rompeu, gritando, furiosa:

— Então a senhora imagina que isto há de ficar assim? A senhora imagina que por o seu amante se safar, isto há de ficar assim?

— Que é, mulher? - fez Luísa, petrificada.

— Se a senhora pensa, que por o seu amante se safar, isto há de ficar em nada? - berrou.

— Oh, mulher, pelo amor de Deus!...

A sua voz tinha tanta angústia que Juliana calou-se.

Mas depois de um momento, mais baixo:

— A senhora bem sabe que se eu guardei as cartas, para alguma coisa era! Queria pedir ao primo da senhora que me ajudasse! Estou cansada de trabalhar, e quero o meu descanso. Não ia fazer escândalo; o que desejava é que ele me ajudasse... Mandei ao hotel esta tarde... O primo da senhora tinha desarvorado! Tinha ido para o lado dos Olivais, para o inferno! E o criado ia à noite com as malas. Mas a senhora pensa que me logram? - E retomada pela sua cólera, batendo com o punho furiosamente na mesa: - Raios me partam, se não houver uma desgraça nesta casa, que há de ser falada em Portugal!

— Quanto quer você pelas cartas, sua ladra? - disse Luísa, erguendo-se . direita, diante dela.

Juliana ficou um momento interdita.

— A senhora ou me dá seiscentos mil réis, ou eu não largo os papéis! - respondeu, empertigando-se.

— Seiscentos mil réis! Onde quer você que eu vá buscar seiscentos mil réis?

— Ao inferno! - gritou Juliana. - Ou me dá seiscentos mil réis, ou tão certo como eu estar aqui, o seu marido há de ler as cartas!

Luísa deixou-se cair numa cadeira, aniquilada.

— Que fiz eu para isto, meu Deus? Que fiz para isto?

Juliana plantou-se-lhe diante, muito insolente.

— A senhora diz bem, sou uma ladra, é verdade; apanhei a carta no cisco; tirei as outras do gavetão. É verdade! E foi para isto, para mas pagarem! - E traçando, destraçando o xale, numa excitação frenética: - Não que a minha vez havia de chegar! Tenho sofrido muito, estou farta! Vá buscar o dinheiro onde quiser. Nem cinco réis de menos! Tenho passado anos e anos a ralar-me! Para ganhar meia moeda por mês, estafo-me a trabalhar, de madrugada até à noite, enquanto a senhora está de pânria! É que eu levanto-me às seis horas da manhã - e é logo engraxar, varrer, arrumar, labutar, e a senhora está muito regalada em vale de lençóis, sem cuidados, nem canseiras. Há um mês que me ergo com o dia, para meter em goma, passar, engomar! A senhora suja, suja, quer ir ver quem lhe parece, aparecer-lhe com tafularias por baixo e cá está a negra, com a pontada no coração, a matar-se com o ferro na mão! E a senhora, são passeios, tipóias, boas sedas, tudo o que lhe apetece - e a negra? A negra a esfalfar-se!

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