O Primo Basílio (26 page)

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Authors: Eça de Queirós

— Se pudesses aqui passar a noite!

Ela disse aterrada, quase suplicante:

— Oh! Não me tentes, não me tentes...

Basílio suspirou, disse:

— Não, é uma tolice. Vai.

Luísa começou a arranjar-se, à pressa. E de repente, parando, com um sorriso:

— Sabes tu uma coisa?

— O quê, meu amor?

— Estou a cair com fome! Não almocei nada, estou a cair!

Ele ficou desolado:

— Coitadinha, minha pobre filha! Se eu soubesse...

— Que horas são, filho?

Basílio viu o relógio; disse quase envergonhado:

— Sete!

— Ai, Santo Deus!

Punha o chapéu, o véu, atrapalhadamente:

— Que tarde! Jesus! Que tarde!

— E amanhã, quando?

— À uma.

— Com certeza?

— Com certeza.

— Ao outro dia foi muito pontual. Basílio veio esperá-la ao fundo da escada; e apenas entraram no quarto, devorando-a de beijos:

— Que me fizeste tu? Desde ontem que estou doido!

Mas Luísa estava muito intrigada com um cesto que via em cima da cama.

— Que é aquilo?

Ele sorriu, levou-a pela mão junto da barra de ferro, e destapando o cesto, com uma cortesia grave:

— Provisões, festins, bacanais! Não dirás depois que tens fome!

Era um lanche. Havia sanduíches, um pâté de foie gras, fruta, uma garrafa de champanhe, e, envolto em flanela, gelo.

— É brilhante! - disse ela, com um sorriso quente, rubra de prazer.

— Foi o que se pode arranjar, minha querida prima! Já vê que pensei em si!

Pôs o cesto no chão, e vindo para ela com os braços abertos:

— E tu pensaste em mim, meu amor? Os olhos dela responderam - e a pressão apaixonada dos seus braços. As três horas lancharam. Foi delicioso; tinham estendido um guardanapo sobre a cama; a louça tinha a marca do Hotel Central; aquilo parecia a Luísa muito estróina, adorável - e ria de sensualidade, fazendo tilintar os pedacinhos de gelo contra o vidro do copo, cheio de champanhe. Sentia uma felicidade que transbordava em gritinhos, em beijos, em toda a sorte de gestos buliçosos. Comia com gula; e eram adoráveis os seus braços nus movendo-se por cima dos pratos.

Nunca achara Basílio tão bonito; o quarto mesmo parecia-lhe muito conchegado para aquelas intimidades da paixão; quase julgava possível viver ali, naquele cacifo, anos, feliz com ele, num amor permanente, e lanches às três horas... Tinham as pieguices clássicas; metiam-se bocadinhos na boca; ela ria com os seus dentinhos brancos; bebiam pelo mesmo copo, devoravam-se de beijos - e ele quis-lhe ensinar então a verdadeira maneira de beber champanhe. Talvez ela não soubesse!

— Como é? - perguntou Luísa erguendo o copo.

— Não é com o copo! Horror! Ninguém que se preza bebe champanhe por um copo. O copo é bom para o Colares...

Tomou um gole de champanhe e num beijo passou-o para a boca dela. Luísa riu muito, achou "divino"; quis beber mais assim. Ia-se fazendo vermelha, o olhar luzia-lhe.

Tinham tirado os pratos da cama; e sentada à beira do leito, os seus pezinhos calçados numa meia cor-de-rosa pendiam, agitavam-se, enquanto um pouco dobrada sobre si, os cotovelos sobre o regaço, a cabecinha de lado, tinha em toda a sua pessoa a graça lânguida de uma pomba fatigada.

Basílio achava-a irresistível; quem diria que uma burguesinha podia ter tanto chique, tanta queda? Ajoelhou-se, tomou-lhe os pezinhos entre as mãos, beijou-lhos; depois, dizendo muito mal das ligas "tão feias, com fechos de metal", beijou-lhe respeitosamente os joelhos; e então fez-lhe baixinho um pedido. Ela corou, sorriu, dizia: "não! não!" E quando saiu do seu delírio tapou o rosto com as mãos, toda escarlate; murmurou repreensivamente:

— Oh, Basílio!

Ele torcia o bigode, muito satisfeito. Ensinara-lhe uma sensação nova; tinha-a na mão!

Só às seis horas se desprendeu dos seus braços. Luísa fez-lhe jurar que havia de pensar nela toda a noite: - Não queria que ele saísse; tinha ciúme do Grêmio, do ar, de tudo! E já no patamar voltava, beijava-o, louca, repetia:

— E amanhã mais cedo, sim? Para estarmos todo o dia.

— Não vais ver a D. Felicidade?

— Que me importa a D. Felicidade! Não me importa ninguém! Quero-te a ti! Só a ti!

— Ao meio-dia?

— Ao meio-dia!

Quanto lhe pesou à noite a solidão do seu quarto! Tinha uma impaciência que a impelia a prolongar a excitação da tarde, agitar-se. Ainda quis ler, mas bem depressa arremessou o livro; as duas velas acesas sobre o toucador pareciam-lhe lúgubres; foi ver a noite; estava tépida e serena. Chamou Juliana:

— Vá pôr um xale, vamos à casa da senhora D. Leopoldina.

Quando chegaram foi a Justina que veio abrir, depois de uma grande demora, esguedelhada, em chambre branco. Pareceu muito espantada:

— A senhora foi pra o Porto!

— Para o Porto!

— Sim. Demorava-se quinze dias.

Luísa ficou muito desconsolada. Mas não queria voltar; o seu quarto solitário aterrava-a.

— Vamos um bocado até ali abaixo, Juliana. A noite está tão bonita!

— Rica, minha senhora!

Foram pela Rua de São Roque. E como guiadas pelas duas linhas de pontos de gás que desciam a Rua do Alecrim, o seu pensamento, o seu desejo foram logo para o Hotel Central.

Estaria em casa? Pensaria nela? Se pudesse ir surpreendê-lo de repente, atirar-lhe aos braços, ver as suas malas... Aquela idéia fazia-a arfar. Entraram na Praça de Camões. Gente passeava devagar; sobre a sombra mais escura que faziam as árvores cochichava-se pelos bancos; bebia-se água fresca; claridades cruas de vidraças, de portas de lojas destacavam em redor no tom escuro da noite; e no rumor lento das ruas em redor, sobressaíam as vozes agudas dos vendedores de jornais.

Então um sujeito com um chapéu de palha passou tão rente dela, tão intencionalmente que Luísa teve medo. - Era melhor voltarem - disse.

Mas ao meio da Rua de São Roque o chapéu de palha reapareceu, roçou quase o ombro de Luísa; dois olhos repolhudos dardejaram sobre ela.

Luísa ia desesperada; o tique-taque das suas botinas batia vivamente a laje do passeio; de repente, ao pé de São Pedro de Alcântara, de sob o chapéu de palha saiu uma voz adocicada e brasileira, dizendo-lhe junto ao pescoço:

— Aonde mora, ó menina?

Agarrou aterrada o braço de Juliana.

A voz repetiu:

— Não se agaste, menina, onde mora?

— Seu malcriado! - rugiu Juliana.

O chapéu de palha imediatamente desapareceu entre as árvores.

Chegaram a casa a arquejar. Luísa tinha vontade de chorar; deixou-se cair na causeuse, esfalfada, infeliz. Que imprudência, pôr-se a passear pelas ruas de noite, com uma criada! Estava doida, desconhecia-se. Que dia aquele! E recordava-o desde pela manhã: o lanche, o champanhe bebido pelos beijos de Basílio, os seus delírios libertinos; que vergonha! E ir a casa de Leopoldina, de noite, e ser tomada na rua por uma mulher do Bairro Alto!... De repente lembrou-lhe Jorge no Alentejo trabalhando por ela, pensando nela... Escondeu o rosto entre as mãos, detestou-se; os seus olhos umedeceram-se.

Mas na manhã seguinte acordou muito alegre. Sentia, sim, uma vaga vergonha de todas as suas tolices da véspera, e com a sensação indefinida, palpite ou pressentimento, de que não devia ir ao Paraíso. O seu desejo, porém, que a impelia para lá vivamente, forneceu-lhe logo razões; era desapontar Basílio; a não ir hoje não devia voltar, e então romper... Além disso a manhã muito linda atraía a rua; chovera de noite, o calor cedera; havia nos tons da luz e do azul uma frescura lavada e doce.

E às onze e meia descia o Moinho de Vento, quando viu a figura digna do Conselheiro Acácio que subia da Rua da Rosa, devagar, com o guarda-sol fechado, a cabeça alta.

Apenas a avistou apressou-se, curvou-se profundamente:

— Que encontro verdadeiramente feliz!...

— Como está, Conselheiro? Ditosos olhos que o vêem!

— E Vossa Excelência, minha senhora? Vejo-a com excelente aspecto!

Passou-lhe à esquerda com um movimento solene; pôs-se a caminhar ao lado dela.

— Permite-me decerto que a acompanhe na sua excursão?

— Decerto, com o maior prazer. Mas que tem feito? Tenho muito que lhe ralhar...

— Estive em Sintra, minha querida senhora. - E parando: - Não sabia? O Diário de Noticias especificou-o!

— Mas depois de vir de Sintra?

Ele acudiu:

— Ah! Tenho estado ocupadíssimo! Ocupadissimo! Inteiramente absorvido na compilação de certos documentos que me eram indispensáveis para o meu livro... - E depois de uma pausa: - Cujo nome não ignora, creio.

Luísa não se recordava inteiramente. O Conselheiro então expôs o titulo, os fins, alguns nomes de capítulos, a utilidade da obra: era a descrição pitoresca dos principais cidades de Portugal e seus mais famosos estabelecimentos.

— É um guia, mas um guia científico. Ilustrarei com um exemplo: Vossa Excelência quer ir a Bragança: sem o meu livro é muito natural (direi, é certo) que volta sem ter gozado das curiosidades locais; com o meu livro percorre os edifícios mais notáveis, recolhe um fundo muito sólido de instrução, e tem ao mesmo tempo o prazer.

Luísa mal o escutava, sorrindo vagamente sob o seu véu branco.

— Está hoje muito agradável! - disse ela.

— Agradabilíssimo! Um dia criador!

— Que bom fresco aqui!

Tinham entrado em São Pedro de Alcântara; um ar doce circulava entre as árvores mais verdes; o chão compacto, sem pó, tinha ainda uma ligeira umidade; e, apesar do sol vivo, o céu azul parecia leve e muito remoto.

O Conselheiro então falou do estio; tinha sido tórrido! Na sua sala de jantar tinha havido quarenta e oito graus à sombra! Quarenta e oito graus! - E com bonomia, querendo logo desculpar a sala daquela exageração canicular: - Mas é que está exposta ao sul! Façamos essa justiça! Está muito exposta ao sul! Hoje, porém, está verdadeiramente restaurador.

Convidou-a mesmo a dar uma volta embaixo no jardim. Luísa hesitava. E o Conselheiro puxando o relógio, fitando-o de longe, declarou logo que ainda não era meio-dia. Estava certo pelo Arsenal; era um relógio inglês. - Muito preferíveis aos suíços! - acrescentou com ar profundo.

Cobardemente, por inércia, enervada pela voz pomposa do Conselheiro, Luísa foi descendo, contrariada, as escadinhas para o jardim. De resto - pensava - tinha tempo, tomaria um trem...

Foram encostar-se às grades. Através dos varões viam, descendo num declive, telhados escuros, intervalos de pátios, cantos de muro com uma ou outra magra verdura de quintal ressequido; depois, no fundo do vale, o Passeio estendia a sua massa de folhagem prolongada e oblonga, onde a espaços branquejavam pedaços da rua areada. Do lado de lá erguiam-se logo as fachadas inexpressivas da Rua Oriental, recebendo uma luz forte que fazia faiscar as vidraças; por trás iam-se elevando no mesmo plano terrenos de um verde crestado fechados por fortes muros sombrios; a cantaria da Encarnação de um amarelo triste; outras construções separadas, até ao alto da Graça coberta de edifícios eclesiásticos, com renques de janelinhas conventuais e torres de igrejas, muito brancas sobre o azul; e a Penha de França, mais para além, punha em relevo o vivo do muro caiado, de onde sobressaia uma tira verde-negra de arvoredo. À direita, sobre o monte pelado, o castelo assentava, atarracado, ignobilmente sujo; e a linha muito quebrada de telhados, de esquinas de casas da Mouraria e da Alfama descia com ângulos bruscos até as duas pesadas torres da Sé, de um aspecto abacial e secular. Depois viam um pedaço do rio, batido da luz; duas velas brancas passavam devagar; e na outra banda, à base de uma colina baixa que o ar distante azulava, estendia-se a correnteza de casarias de uma povoaçãozinha de um branco de crê luzidio. Da cidade um rumor grosso e lento subia, onde se misturavam o rolar dos trens, o pesado rodar dos carros de bois, a vibração metálica das carretas que levam ferraria, e algum grito agudo de pregão.

— Grande panorama! - disse o Conselheiro com ênfase. - E encetou logo o elogio da cidade. Era uma das mais belas da Europa, decerto, e como entrada, só Constantinopla! Os estrangeiros invejavam-na imenso. Fora outrora um grande empório, e era uma pena que a canalização fosse tão má, e a edilidade tão negligente!

— Isto devia estar na mão dos ingleses, minha rica senhora! - exclamou.

Mas arrependeu-se logo daquela frase impatriótica. Jurou que era uma maneira de dizer. Queria a independência do seu país; morreria por ela, se fosse necessário; nem ingleses nem castelhanos!... Só nós, minha senhora! - E acrescentou com uma voz respeitosa: - E Deus!

— Que bonito está o rio! - disse Luísa.

Acácio afirmou-se, e murmurou em tom cavo:

— O Tejo!

Quis então dar uma volta pelo jardim. Sobre os canteiros borboletas brancas, amarelas, esvoaçavam; um gotejar de água fazia no tanque um ritmozinho de jardim burguês; um aroma de baunilha predominava; sobre a cabeça dos bustos de mármore, que se elevam dentre os maciços e as moitas de dálias, pássaros pousavam.

Luísa gostava daquele jardinzinho, mas embirrava com as grades tão altas...

— Por causa dos suicídios! - acudiu logo o Conselheiro. - E todavia, segundo a sua opinião, os suicídios em Lisboa diminuíam consideravelmente; atribuía isso à maneira severa e muito louvável como a imprensa os condenava...

— Porque em Portugal, creia isto, minha senhora, a imprensa é uma força!

— Se fôssemos andando?... - lembrou Luísa.

O Conselheiro curvou-se, mas vendo-a, a ir colher uma flor, reteve-lhe vivamente o braço:

— Ah, minha rica senhora, por quem é! Os regulamentos são muito explícitos! Não os infrinjamos, não os infrinjamos! - E acrescentou: - O exemplo deve vir de cima.

Foram subindo, e Luísa pensava: - "Vai para casa; larga-me ao Loreto."

Na Rua de São Roque espreitou o relógio de uma confeitaria: era meia hora depois do meio-dia! Já Basílio esperava!

Apressou o passo, ao Loreto parou. O Conselheiro olhou-a, sorrindo, esperando.

— Ah! Pensei que ia para casa, Conselheiro!

— Já agora quero acompanhá-la, se Vossa Excelência mo permite. Decerto não sou indiscreto?

— Ora essa! De modo nenhum.

Uma carruagem da Companhia passava, seguida de um correio a trote.

O Conselheiro, com um movimento ansioso, tirou profundamente o chapéu.

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